São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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O retorno

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – A letra é de mulher, abro o envelope e cai um santinho amarelado, a estampa é antiga e tem a legenda óbvia: "Le Retour du Calvaire". Verifico esse retorno: no primeiro plano, a Virgem amparada por João, um pouco atrás (a última a deixar o Calvário), Maria Madalena, os cabelos ainda cheirando ao óleo com que lavou e enxugou os pés de seu Amigo.
No segundo plano, o cenário que a cristandade conserva na retina de seus filhos e no marco de sua história: as três cruzes, destacadas de um céu sombrio, da Renascença em diante todos os que imaginaram a cena acreditam que naquele instante o céu estava sombrio. Vistas à distância, as três cruzes parecem iguais, e são mesmo, embora numa delas tenha morrido um deus.
A mãe, o amigo que ele amava e a amiga que o amava voltam para casa, depois de tudo. A primeira estrela do "shabat" ainda não brilhou, os judeus ainda não pediram que Pilatos mandasse sepultar os corpos. Maria, João e Madalena voltam para casa –é o retorno. O retorno do Calvário.
Por que me mandaram isso? Examino o envelope, podia ser um equívoco postal. Não, está tudo correto, nome, endereço, até mesmo o CEP que até hoje não consegui decorar.
Durante o resto do dia procurei esquecer o santinho, mas ele me incomodava, como um compromisso que eu não tinha a intenção de cumprir. O apelo daquele retorno era quase um insulto. Vivo no século 20, talvez chegue ao 21, não creio em Deus, já gastei todas as balas do fuzil e não acabei nem com a inflação dos outros nem com a angústia que é minha. Por que me mandaram um troço desses?
Outro dia recebi um santinho do Roberto Campos –e compreendi a remessa. O número dele é fácil de guardar, tudo bem, mas nem Maria, nem João nem Madalena são candidatos a deputado federal pelo Rio. Eles voltam para casa, apenas isso, amparados um no outro, depois de tudo consumado.
Quem quer que seja que mandou o Retorno do Calvário, não perca tempo nem me faça perder o rumo: na impossibilidade de ir para a frente, vou para os lados –que é uma forma certa de incertamente andar para trás.

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