São Paulo, sábado, 19 de novembro de 1994
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'Sem os objetos eu morreria', diz paciente

DO ENVIADO ESPECIAL

Odilon Arruda, 25, chegou ao Centro Psiquiátrico Pedro 2º, em sua segunda internação, e o máximo que conseguia dizer era: "Sinto uma navalhada na memória".
Ficava prostrado na cama e repetia que não sentia mais nada, nem cheiro nem sabor, nem ouvia. Reclamava de dores de estômago, vomitava; os médicos chegaram a pensar em gastrite, mas o diagnóstico foi outro: esquizofrenia.
Depois de 20 sessões com os objetos relacionais, aliadas a medicamentos e sessões de análise, ele não se curou, mas fala, anda, vai ao cinema e bailes funk.
Odilon Arruda é um nome fictício para preservar a identidade do paciente. Mas a história é real.
Ele responde perguntas, mas intercala o que lhe foi perguntado com delírios. Chama os objetos relacionais de "pesinhos", pelo peso que eles fazem sobre o corpo. Veja o tipo de coisas que diz:
Folha - Como você se sente após ser tratado com pesinhos?
Arruda - Eu preciso dos pesinhos. Sem eles acho que eu morreria. Com os pesinhos eu sentia uma sensação de foder. Sou muito agressivo, pior que o capeta, e agora estou mais sossegado.
Folha - Você prefere tomar remédios ou os pesinhos?
Arruda - Preciso de pesinho, árvore, oliveira, capixaba, brinco, olhos de tigre, de leão, dinossauro, trigossauro, de proteína, de Sustagen. Sabia que eu formei países na Terra? Los Angeles, Estados Unidos, França... Formei porque me sacrifiquei. Fiquei em pé sete noites. Sou o pai dos deuses. Olha a marquinha! (levanta a camiseta e aponta para o peito).
O vazio
Odilon melhorou, segundo o terapeuta Lula Vanderlei. "Nunca curei ninguém, mas as pessoas nunca voltam a ser o que eram antes. Ficam mais felizes", diz.
O antes, no caso de Odilon, tem algo de assustador. Ele vinha de uma desilusão amorosa e na primeira sessão com os objetos se define como "vazio e cheio".
O vazio, como ele apontava, estava na cabeça, no coração e no órgão sexual.
Na segunda sessão, após a colocação dos objetos sobre seu corpo, diz que sentia como se tivesse no corpo uma armação de madeira, similar àquelas que sustentam as pipas empinadas por crianças.
Duas sessões depois, Odilon fala que está pensando em comer pedra ou vidro para melhorar sua saúde. Chega, de fato, a comer pedra várias vezes.
Só na sexta sessão ele volta a ter sensações. Após a aplicação dos objetos, quando o terapeuta toca sua cabeça e seus pés, fala que o céu tocou sua cabeça e seus pés.
Na oitava sessão, as sensações aumentam. Diz que há um grande coração no seu peito.
As sensações vão voltando até Odilon dizer que havia sentido desejo sexual ao ver uma novela. Fala que está aprendendo a flertar com garotas, vai melhorando até o tratamento ser encerrado.
O cheio
Vanderlei diz que as pessoas tendem a ver os objetos relacionais de Lygia Clark como misteriosos. Mas ele tem uma explicação para casos como o de Odilon, que encontrou na obra da própria artista.
O objeto relacional, ao provocar sensações múltiplas, tocaria nas fantasias primordiais e aumentaria o contato afetivo do paciente com a realidade.
Psicóticos tendem a ver o próprio corpo fragmentando, com vazios como o que o paciente descrevia, segundo o terapeuta. "É um corpo vazio, não vivido", diz.
O objeto relacional, para Vanderlei, é que acaba por preencher esse vazio. "O objeto relacional some no interior imaginário do corpo. Há uma fusão entre corpo e fantasia. Se não fossem os objetos, o vazio seria preenchido por delírios e alucinações", afirma.
Era essa, pelo menos, a utopia de Lygia Clark.

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