São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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Uma boa dose de realidade

WIN WENDERS

Na Europa a maioria dos filmes são lançados simplesmente com a esperança de conseguirem algumas boas críticas nos jornais. Depois se afixa alguns cartazes, principalmente em lugares onde não é preciso pagar, de modo que são arrancados no dia seguinte. Essa é a estratégia européia. Ela só funcionou enquanto os filmes não eram vistos como produtos. Mas hoje eles SÃO produtos. Hoje, mesmo um filme de arte é um produto.
Acho muito preocupante o fato de os políticos europeus não terem se dado ao trabalho de compreender o significado do Gatt, ou de tê-lo compreendido errado. Dizer que as produções cinematográficas são indústrias tão pequenas em nossos países individuais que podemos tratá-las como peões num jogo de xadrez demonstra grande falta de visão. Isso é desastroso por duas razões, uma cultural e a outra econômica.
Não é apenas que vamos perder nossa cultura cinematográfica –a razão cultural mais importante é que a própria Europa irá se fragmentar. A Europa ainda é uma idéia tão frágil –pudemos ver em várias ocasiões recentes o quanto ainda é frágil. A Europa só poderá realmente chegar e firmar-se na cabeça das pessoas de todos esses países diferentes se ela figurar por muito tempo em nosso imaginário e em nossa imaginação comum.
Se, em lugar disso, formos alimentados durante os próximos dez anos com imagens quase exclusivamente americanas –e se cedermos à pressão americana em Bruxelas, é isso que vai acontecer–, então a Europa enquanto idéia vai fracassar. Os filmes americanos não vão nos ajudar a definir a Europa, e não nos ajudarão a encontrar uma soma maior do que o total de nossas partes.
Sem um imaginário europeu, num sentido bem amplo, a Europa enquanto realidade não tem chances de sobreviver. As idéias européias precisam aparecer em filmes e programas de televisão para que a idéia da Europa possa ser perpetuada até o próximo milênio.
O segundo perigo vem do fato de que as pessoas acreditam, cada vez mais, no que vêem, e compram aquilo em que acreditam. Se, a longo prazo, desistirmos da indústria do cinema europeu, considerando-o peão, então todas as outras indústrias européias também vão sofrer no futuro.
As pessoas usam, dirigem, vestem, comem e compram o que vêem no cinema. Precisamos abordar nosso cinema do mesmo modo que abordamos nossa literatura. Livros jamais seriam incluídos em acordos comerciais e industriais bilaterais.
Se abrirmos mão de nossas imagens agora, a Europa vai descobrir-se na situação de continente do Terceiro Mundo até o ano 2000. A situação é grave a este ponto.
Hoje o continente europeu está dividido em tantas culturas diferentes. A TV é feita para culturas nacionais específicas, e por isso é um lugar onde podem surgir estrelas. Nos anos 90, as pessoas realmente querem e precisam, mais do que nunca, de estrelas para servirem de exemplos e guias, e elas só as encontram na televisão. As únicas estrelas que conhecem do cinema são as americanas, que já vêm prontas e são facilmente aceitas.
Precisamos reorganizar nossa indústria de maneira que nos permita produzir astros e estrelas na Europa. Talvez parte disso resulte da falta de uma abordagem realmente pan-européia à produção. Esforços são feitos para atravessar fronteiras, mas ainda não existe uma produção verdadeiramente pan-européia.
Por enquanto essa idéia é apenas algo que se vislumbra no horizonte. O fenômeno em que um ator vem da Alemanha, um da Grã-Bretanha e um da França, e é só assim que se pode fazer uma co-produção a três, é bizarro e ridículo. É decorrência do pensamento subsidiado. Isso não incentiva os astros e estrelas, e certamente não os cria. É preciso poder fazer uma escolha independente de elenco.
Mas também precisamos de pessoas que queiram ser astros e estrelas. Não é possível fabricar estrelas. Ser astro ou estrela é um trabalho incrivelmente árduo, e é preciso estar disposto a dar-se a esse trabalho. Isso também é uma tradição muito mais americana do que européia. Boa parte dos atores europeus, que de modo geral vêm do teatro, não se dispõe a enfrentar esse trabalho todo.
E não se pode culpá-los por isso, porque parte desse trabalho é destrutivo e mortalmente entediante. O sucesso é quase um motivo para se ser punido em alguns países europeus, onde as estrelas são criticadas excessivamente e se magoam, para depois retrair-se e voltar ao teatro. Nesse ambiente, é difícil tornar-se estrela.
De seis anos para cá o Felix vem se tornando cada vez conhecido, embora nossa desvantagem seja que os prêmios deveriam haver começado pelo menos 20 anos atrás. Mas se considerarmos o Felix como um produto, então precisamos investir nele. Quanto mais ele aparecer e mais for conhecido, mais se pode realmente levar o público a tomar nota dos filmes premiados.
Precisamos desenvolver uma campanha e estratégia publicitária para transformar o Felix num símbolo real. Assim, embora soe estranho, pode-se dizer que o Felix ainda depende mais dos filmes que premia do que vice-versa.
Mas esse ano acho que a Academia deu um grande passo na direção certa, ao vincular as premiações –pelo menos o Melhor Filme Europeu– a um critério comercial muito simples: os filmes têm que ter tido um determinado sucesso de bilheteria para poderem se candidatar à indicação.
E este ano, pela primeira vez, há alguns concorrentes europeus que realmente chamam a atenção. É claro que o Melhor Filme Jovem não pode ser submetido aos mesmos critérios comerciais. Nesse campo a escolha é aberta, e permanece um campo aberto às descobertas.
Estamos fazendo grandes filmes na Europa. E há necessidade deles, não apenas neste continente. Os americanos também precisam de nossos filmes, e a indústria cinematográfica americana precisa muito da indústria cinematográfica européia para funcionar de contraponto e banco de idéias, como o passado já mostrou tão claramente.

WIM WENDERS é cineasta presidente da Academia Européia de Cinema
Tradução de Clara Allain

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