São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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Teoria incompleta de uma exposição brasileira

Foram para Frankfurt cerca de 70 autores de várias áreas

FELIPE JOSÉ LINDOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A antropóloga e editora Lilia Moritz-Schwarcz publicou no Mais! (de 6/11) um artigo no qual critica a apresentação do Brasil como "país-tema" da 46ª Feira do Livro de Frankfurt (Alemanha). Surpreendi-me com o descaso de método e rigor usado pela professora e pela maneira caricata como descobre uma "teoria" para explicar o que não viu.
Qualquer estudante de antropologia sabe que uma das questões centrais do método antropológico é a de conseguir informações abrangentes, extraídas tanto da ação dos agentes sociais (o que implica na observação) quanto do discurso e das explicações dos membros do grupo estudado (o que implica no recolhimento das diferentes "versões"). A professora Moritz-Schwarcz escuda-se em sua posição acadêmica, utilizando-a como critério de autoridade. Mas na verdade fez um texto a partir de observações superficiais e incompletas do que estava acontecendo em Frankfurt.
Pode-se talvez explicar isso pelo fato de, lá, a professora Moritz-Schwarcz estar usando seu outro chapéu, o de editora e, "neurótica e apressada" –como ela define o caráter da feira, passar o tempo "correndo com pasta na mão e óculos no nariz, sempre atrasada para seu próximo encontro". Essa explicação, entretanto, não legitima seu palpite como uma explicação "antropológica" do que aconteceu em Frankfurt a partir de dados conseguidos de oitiva.
A professora Moritz-Schwarcz teoriza fazendo um paralelo entre a Feira de Frankfurt e as exposições internacionais do século passado. Como nessas exposições, o que se tinha em Frankfurt era uma versão do "exotismo" do Brasil. Três parágrafos depois, e uma enorme desinformação, reconhece que "não era esse o panorama da exposição que se realizava em outubro de 1994". Mas, ao justificar que o "ar" predominante era o das exposições do 19, cita um suposto "antigo prédio, todo vidrado", originalmente idealizado nos fins do século 19 para as tais exposições. O prédio mais antigo da Messegelande de Frankfurt é o Festhalle, uma espécie de ginásio do Ibirapuera ou Maracanãzinho, construído no começo da década de 50, e utilizado para exibições de espetáculos.
A professora enfoca seu artigo na exposição central. Justificando essa opção, diz que "foram organizados alguns debates e algumas poucas mostras, já que muitas não chegaram à Alemanha". A neurótica e apressada professora-editora não teve tempo de ler a programação de eventos distribuída fartamente na feira. Se tivesse feito isso e tido algum rigor ao escrever, poderia constatar que: a) de todas as exposições originalmente programadas pelo comitê organizador da participação brasileira, apenas duas não foram levadas. Uma era a que tratava da moda no carnaval, e foi desativada por ser muito cara (e imaginem o que não diria a professora se essa exposição tivesse ido!); a outra foi a exposição de arte plumária dos indígenas brasileiros, pelas mesmas razões; b) além de 16 exposições organizadas e enviadas para Frankfurt pelo comitê brasileiro, a feira contabilizou mais de 400 eventos diretamente relacionados com o Brasil, com escritores brasileiros e com a cultura brasileira, em toda a Alemanha. Desses eventos, cerca de 200 foram leituras, palestras e debates envolvendo diretamente os intelectuais e escritores que a professora Moritz-Schwarcz transforma em fantasmas e lamenta que o Brasil não tenha levado para serem reconhecidos.
Foram para Frankfurt cerca de 70 autores, das mais diferentes áreas. Desde grandes nomes, traduzidos em vários idiomas, até jovens escritores que estavam por lá batalhando não apenas pela venda de direitos de livros seus no exterior, mas também como amostra da diversidade (e da excelência) de nossa produção literária.
Nada disso foi visto pela professora Moritz-Schwarcz. É estranho que alguém que se qualifica como antropóloga demonstre tão pouca capacidade de observação.
Ao ignorar o que mais se fez, e não se importar em perguntar quais os objetivos buscados por quem organizou o evento, a professora desqualifica a sua suposta análise da exposição central. Essa passa a ser apenas uma opinião subjetiva que se recusou a considerar o conjunto dos fatos.
A professora-editora estranhamente não compreende que a Feira do Livro de Frankfurt é uma feira de livros e não de literatura. A diferença é abismal. Livro aguenta tudo. Desde a filosofia e os ensaios antropológicos mais ou menos fundamentados até a literatura mais vulgar. E a Feira de Frankfurt abriga isso tudo. Consequentemente, o público-alvo de uma exposição em Frankfurt não é o dos literatos, e nem mesmo o dos editores de literatura "high brow", por onde quer circular a professora, e sim um universo muito heterogêneo cujo único traço realmente comum é o livro.
A exposição central do país-tema pode optar por inúmeras alternativas para dar um panorama geral de sua cultura. Nós organizamos a exposição a partir de três premissas: a) O Brasil é muito mais complexo do que os estereótipos veiculados na imprensa européia. O país tem favelas e crianças nas ruas, mas tem também uma grande série de características das quais pode se orgulhar, e uma diversidade de modos de vida, ambientes naturais e construídos e uma dimensão que nem sempre é percebida; b) o Brasil tem tudo isso e se diferencia não pela negação, por não ser europeu, mas por ser precisamente o resultado de um processo histórico-cultural extremamente complexo; c) essa diversidade pode ser apresentada em grandes traços na exposição central, mas a caracterização de especificidades deve ser complementada com outros eventos paralelos.
O Brasil, felizmente, é também um país simpático, onde o que importa também é política, mulher e futebol. Isso faz parte do Brasil, como a prontidão e outras bossas do Noel Rosa. Mas, também felizmente, não é a isso que se resume o Brasil e nem a isso se resumiu a exposição central. O seu visitante podia passar apressado, em uma pausa entre seus compromissos. Mas podia também entrar em cada módulo para conseguir novos níveis de informação. Inclusive através de livros, dos mais de 5.000 volumes sobre todos os temas que levamos para Frankfurt. Livros que mostravam o quanto os brasileiros pensam e escrevem sobre si e sobre o mundo, e que foram vistos e manuseados por mais de 50.000 pessoas que visitaram a exposição central.
O nosso objetivo foi efetivamente o de mostrar a singularidade do país. Uma singularidade que é também universalidade, posto que se afirma pela complexidade e é isso o que caracteriza cada país: ser uma combinação específica como resultado de um processo histórico.
Quem viu homogeneidade na exposição realmente não viu nada. Apenas passeou por lá e resolveu escrever para "épater" e revelar-se como alguém que aqui quer por força mostrar que é do "Primeiro Mundo" e lá fora faz questão de esconder que é brasileiro.
Em tempo: a Companhia das Letras, à qual está vinculada a professora-editora, não colaborou em nada com a apresentação brasileira, recusou-se a convidar seus autores para Frankfurt (quem apareceu por lá ou foi convidado pelo governo ou foi conta própria), como também o seu editor Luis Schwarcz deu repetidas declarações sobre a "desimportância" do evento. Esta semana, na Faculdade Cândido Mendes, no Rio, disse, entretanto, que "não tinha nada a reclamar dos resultados da participação do Brasil em Frankfurt". É! Essa coisa do gato que quer tirar a castanha com a pata dos outros também faz parte do Brasil.

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