São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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Exército neles!

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Militares do Exército, em uniforme camuflado, metralhadoras em punho, detêm torcedores de futebol nas imediações do Maracanã. A cena, retrato clamoroso do desrespeito às normas constitucionais, junta-se a outras tantas para ir transformando, aos olhos do país, uma aberração em fato corriqueiro.
Vai-se habituando a sociedade à presença das Forças Armadas no lugar da Polícia, naturalizando-se uma intervenção que, sintomaticamente, conta com o apoio explícito da maioria dos cariocas e com a concordância tácita de "formadores de opinião".
Um documento secreto revelado pela Folha no último domingo demonstra a disposição do Exército em recuperar um velho amigo: o "inimigo interno" de outras épocas, agora travestido de narcotraficante. Segundo o texto publicado pelo jornal, os Uês e Cabeludos dos morros cariocas seriam a reencarnação "dos movimentos subversivos da década de 70", dos quais teriam herdado "técnicas próprias".
O documento e as constantes reuniões envolvendo Forças Armadas, governo estadual e governo federal revelam um decidido empenho em "solucionar" o problema do crime organizado –que chegou a proporções dignas da máfia siciliana. Mas qual será a amplitude desse empenho? Pelo que se tem visto, resume-se à montagem de uma operação policial-militar de ocupação das favelas.
Qualquer um percebe que o crime organizado no Rio tem sua base na favela e sua cúpula fora dela. O que permite que a favela acolha a atividade do narcotráfico é exatamente a situação de total abandono por parte do Estado.
Sem acesso ao mínimo de benefícios sociais, os favelados cedem à intimidação e à proteção dos traficantes. Pergunto: além do plano de ocupação militar, não passa pela cabeça dos nossos governantes traçar um plano de ocupação social dos morros? Onde estão os documentos secretos prevendo construção de escolas, postos médicos e de assistência social?
Quanto à estratégia repressiva: estamos condenados a presenciar uma guerrilha urbana com mortes e prisões de bandidos negros e pobres, a ser acompanhada de camarote pela cúpula do crime organizado, protegida em suas coberturas de frente para o mar e ruas privatizadas?
Ou será que o crime organizado carioca está circunscrito ao morro? Trazem fuzis e lança-foguetes dos Estados Unidos para o morro, trazem cocaína através da fronteira para o morro e repõem os estoques quando bem entendem, sozinhos, sem ajuda de ninguém?
A definição de um novo "inimigo interno", identificado com a bandidagem favelada é perigosíssima. Pobres passam a ser, de cara, suspeitos –e podem se ver jogados contra um muro, sob a mira de metralhadoras do Exército, num estádio de futebol.
Preparem-se os sem-terra, os sem-teto, os menores de rua. Arrombada a Constituição, a fórmula só tende a se generalizar: Exército neles!

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