São Paulo, terça-feira, 22 de novembro de 1994
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Os estragos da valorização cambial

RICARDO BIELSCHOWSKY

Eleito pela promessa de estabilização de preços, FHC deve estar perdendo o sono com a idéia de eventual retorno da inflação crônica, que inviabilizaria um bom governo. E deve sonhar com a redução da atual taxa residual mensal de 3% a 4% para, digamos, menos de 2%.
Sua agenda econômica inclui uma enorme preocupação política (reforma fiscal e previdenciária) e uma forte tentação, a de utilizar a maxivalorização atual (que, dependendo do setor, já alcançou uns 35%, nos últimos quatro meses) como mecanismo auxiliar de controle inflacionário. Ou seja, a tentação é utilizar a via mexicana e argentina, ancorada na taxa de câmbio.
A lógica é, primeiro, que importações, ainda mais quando apoiadas por valorização cambial, barateiam os preços dos produtos e ajudam a conter a inflação e, segundo, que a abundância de reservas e as perspectivas de que entrem volumosos capitais financeiros nos muitos anos à frente permitirão que se evite a desvalorização da taxa do câmbio mesmo em condições de déficit da balança de pagamento em conta-corrente.
A estratégia é equivocada, porque insustentável a médio prazo. O caso do México, e em menor escala também o da Argentina, já começam a mostrar sinais de cansaço. Ela provoca desindustrialização e imensos déficits na balança comercial, condenando os países que a utilizam a dependerem de crescentes entradas de capitais, boa parte deles inevitavelmente especulativos.
Trata-se de uma estratégia de inflação reprimida, pronta para rebelar-se pela via da explosão cambial no momento em que os agentes econômicos se convencem de que não é sustentável, e em que os capitais começam a fugir.
Ela deverá inviabilizar a atual oportunidade de estabilizar afetivamente a economia brasileira e, de quebra, deverá fazer uma série de estragos irreversíveis, que em muito debilitarão seu potencial de desenvolvimento a longo prazo.
Destaco a seguir quatro prováveis efeitos da estratégia. O prazo de referência para a ocorrência das tendências assinaladas é o governo FHC (quatro anos).
1) Deverá provocar desindustrialização por via de crescente e exagerada intensificação de importações, resultante da simultaneidade entre rápida abertura comercial e aguda valorização cambial. Além de setores tradicionais, como têxtil e calçados, deverão contrair-se os setores de maior dinamismo e maior progresso técnico a nível internacional (metalmecânicos e eletroeletrônicos), o que significa virtual abandono da incorporação no Brasil da chamada terceira revolução industrial, além do desperdício de toda uma cultura industrial (trabalhadores e técnicos qualificados etc.).
2) A desindustrialização será gradual, porque as importações crescerão gradualmente, mas ela deverá ser antecipada pelo abandono de importantes planos de investimento industrial, por parte de empresas nacionais e multinacionais.
Isto representará o desperdício de um ciclo potencial de investimentos muito eficientes, porque realizáveis na base de um parque industrial que vem se racionalizando (mais de 30% de elevação da produtividade em três anos).
3) Deverá provocar desemprego industrial e ampliação dos conflitos sociais, sobretudo nas grandes áreas metropolitanas.
4) Deverá provocar a eliminação da capacidade de controlar a longo prazo a balança de transações correntes. O desequilíbrio comercial deverá ser bem superior aos US$ 10 bilhões a que se referiu o professor Edmar Bacha em entrevista recente (gigantesca expansão das importações e estagnação ou queda das exportações).
Isto significará a introdução de penosa dependência de entrada capitais externos (de qualquer natureza) para compensar o crescente déficit na balança de transações correntes.
Essas tendências deverão tornar-se irreversíveis com o passar dos anos, de modo que o momento de evitar o estrago é agora. A armadilha à qual a macroeconomia da valorização cambial leva a economia real está dada, por um lado, pelo fato de que gradativamente os custos e preços internos passam a depender crucialmente das importações,e fica cada vez mais difícil desvalorizar sem impactar fortemente os preços; e, por outro, pelo fato de que a decisão de localização de investimentos e de produção industrial no Brasil irá se tornando coisa do passado, na nova ordem econômica mundial da produção globalizada.
É certo que não há como desconhecer que enquanto houver reservas e crédito abundante fica mais fácil reduzir a inflação residual recorrendo a importações com valorização cambial do que recorrendo à recessão ou à fórmula sempre difícil da negociação entre empresários e trabalhadores. Ainda assim, é duvidoso que o efeito antiinflacionário seja decisivo no prazo relevante para a desindexação.
Por um lado, porque as importações ainda são reduzidas, pouco podendo servir como mecanismo auxiliar de controle de preços em quase toda a primeira metade do governo; e, por outro, porque a maior parte da cesta básica do trabalhador consiste em produtos não importáveis (alimentos básicos, materiais de construção, serviços públicos e pessoais etc.), pouco podendo as importações funcionarem como mecanismo de suavização da espiral preços-salários.
No entanto, e aqui volto a meu argumento central, mesmo que os benefícios de curto prazo fossem elevados, a estratégia seria equivocada, porque insustentável. Além de estragos irreparáveis à produção, ao emprego, aos investimentos industriais e à balança de pagamentos, só o que ela faz é reprimir a inflação. Em termos de estabilização ela é uma bomba de efeito retardado. Ainda é tempo de desarmá-la sem maiores prejuízos ao Plano Real.

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