São Paulo, terça-feira, 22 de novembro de 1994
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Novo choque traumático

A falta de identidade bem-constituída está no centro da situação de insegurança no Rio
LUIZ ALBERTO BAHIA
Rio, ex-capital federal; Rio, capital do Estado federado; Rio, do Grande Rio; Rio, das belezas incomparáveis e das mazelas bem divulgadas; Rio, Rio do Brasil fraudulento; Rio, subproduto destacado dos decênios de hiperinflação desmoralizante; Rio, vítima de governos civis e militares impotentes na erradicação do crime organizado; Rio, lugar símbolo dos frutos criminais e da miséria; Rio, hoje humilhado em sua auto-estima, porque incapaz de garantir por seus próprios meios a segurança pessoal e familiar e, ao mesmo tempo, os direitos de cidadania.
Tudo isso sabendo ele que não se distingue singularmente, na hierarquia das megalópoles, de uma Grande São Paulo, mais discreta em sua mídia, e de tantos outros Chicagos urbanos. Um Rio mais extrovertido na projeção de sua imagem negativa mal equilibrada pelo Rio cartão-postal. Um Rio degradado desde a inauguração de Brasília.
Enfim, um Rio sobrevivente bravo de tantos choques traumáticos de mudanças de identidade. O carioca tornado guanabarino, logo depois fluminense da capital do Estado, em parceria com os fluminenses também chocados do outro lado da baía. Parceria unificada à força e sem consulta popular prévia, personalidades confundidas em busca de uma identidade comum, também aproximadora dos fenômenos da Baixada e do Norte fluminenses.
Os maiores choques foram os da criação e da extinção do Estado da Guanabara, mais sentido pelos cariocas guanabarinos titubeantes. Criada a Guanabara, compensação devida e vital para a perda da condição de capital federal, a sua extinção teve efeito moral arrasador sobre a população e sobre o padrão das burocracias executivas e judiciária do corpo assassinado; as representações políticas até hoje não se afinaram, disputam entre si, em lugar de agirem e pensarem sob inspiração comum.
Teria sido possível desenvolver um Estado federal viável no hoje território municipal carioca, com uma população de caráter único em seu cosmopolitismo de cidade-Estado, cujo povo foi vitimado por certa geopolítica de origem militar, na época dominante, e de sentido antipaulista.
A partir desse momento implantou-se a crise geral de identidade no Rio e no Grande Rio, uma crise psicossocial favorável à contaminação própria às situações dos males da miséria e do crime, organizado ou não. Estava formado espaço político-social sem espinha dorsal volitiva, só possuída pelas comunidades já com identidade comum bem nascida.
Hoje, o Rio-cidade capital do Estado está sob a jurisdição política de um governador carioca, e o que é mais importante: dotado de forte espírito carioca, uma situação não vivida sob governadores gaúcho e fluminense, e de uma influência cosmopolita harmonizável com os demais provincianismos brasileiros e fluminenses.
Cosmopolitismo que repele o estereótipo caricato do carioca amante do lazer, de um lazer imaginado na figura do preguiçoso e do ocioso, sem aspirações de progresso. Um tipo pervertido superposto à vocação turística do ambiente carioca-fluminense.
O Rio múltiplo caiu no fundo do poço da ocupação militar de áreas faveladas, onde se acoitariam bandidos e traficantes de armas e drogas. Um Rio que logo perceberá que a falta transitória de identidade bem-constituída está no centro da situação de insegurança; imediatamente causada, de um lado, pela fusão em seus efeitos e, de outro, por omissões federais graves no controle do contrabando de armas e de tóxicos para os grandes centros urbanos.
A presença federal nas favelas do Grande Rio está resgatando parcialmente essas antigas omissões.
Brasília faz mea-culpa atrasado por meio de atos de salvação cujos resultados ainda estão sob análise. Cedo se verificará que o crime organizado impera ao comerciar nas favelas pobres, onde ele se valoriza entre favelados sem emprego; mas viceja ocultamente em áreas ditas da sociedade bem, que consome e é de fato mal fiscalizada pelo fisco. Não seria na parte favelada da linha que estaria o mal gerador.
Omissões federais não desculpam responsabilidades policiais locais, principalmente sob governos mais recentes após a fusão. A burocracia do Rio de Janeiro fundido teve oportunidades acrescidas de fraude e corrupção em atmosfera carente de identidade nítida e apta para definir e realizar políticas públicas contra a violência e o crime organizado presentes no ecossistema urbano, sob compressão demográfica social em favelas e comunidades degradadas.
Cogumelos sociais proliferaram, tristes decorrências de anos de ocupação desordenada de solos urbanos, quase todos carentes de infra-estrutura e de títulos regulares de propriedade e posse.
Diga-se, a bem da verdade, que o problema demográfico agravou-se em virtude da atração para o Grande Rio, em escala nacional, de populações pobres justamente desejosas de obter os benefícios fartamente propagados da política de Cieps e afins federais, no Rio. O resultado pode ser medido pela multiplicação de afavelamentos no Grande Rio. Ou seja, de centros vulneráveis à propagação criminosa do Brasil fraudulento.
O tronco carioca-fluminense do Brasil fraudulento se evidencia igualmente na baixa lealdade política de representantes eleitos para com o destino do Estado do Rio de Janeiro, o rebento da fusão. Prevalece representação marcada pela divisão sub-regional que pouco sente o Estado como um todo.
O registro parlamentar tem sido pobre de ações que configuram solidariedade inspirada por identidade a cimentar após mais de dois decênios. Amálgama inferior à merecida, e rala diante de problemas de caráter maior e geral, é a que une.
O novo choque foi dado pelas tropas nas ruas com armamentos de guerra bastante dissuasivos a curto prazo. Cabe perguntar aos cariocas e fluminenses: e agora Rio? Que nos trará o seu futuro? Será a tropa geradora da identidade e da lealdade comuns? Uma esperança que resta para o projeto do novo período de governo, o da viabilização da segurança no território sob guarda.

LUIZ ALBERTO BAHIA, 71, é membro do Conselho Editorial da Folha. Foi redator-chefe do jornal "Correio da Manhã", membro-associado do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge (Reino Unido) em 1976 e professor convidado do Centro para Estudos Internacionais da Universidade de Harvard (EUA) de 1970 a 71.

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