São Paulo, quarta-feira, 23 de novembro de 1994
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O homem cansado, o marinheiro e o advogado

SAULO RAMOS

No dia 29 de junho deste ano, tomei um avião e fui para a Itália. Férias. Em Veneza esperava-me um cruzeiro pelos portos italianos, dando volta completa na bota, com vantagem adicional: a transmissão dos jogos da Copa do Mundo pela RAI 1.
Aprendi a falar "calcio de punizione" (falta), "calcio de rigore" (pênalti) e "calcio de angolo" (escanteio). Fui me desvencilhando do cansaço da advocacia, dos prazos, dos recursos, dos debates, das sustentações orais e, sobretudo, dos nossos intermináveis processos de liquidação de sentença, aqueles em que o devedor faz chicana, apela da conta homologada pelo juiz, entope os tribunais, volta ao juiz da execução, homologa-se novo cálculo, apela-se de novo, retorna aos tribunais, naquele velho esquema de embolar o meio de campo sem chute a gol.
Tentei esquecer tudo isso, com o direito adquirido de singrar os mares, na expressão dos antigos romancistas. Não era mais advogado. Era marinheiro, pescador, gondoleiro, descobridor ou, simplesmente, um homem cansado ("La mer fascinera toujours ceux chez qui le dégo–t de la vie et l'attrait du mystère ont devancé les premiers chagrins" –Proust, "Les Plaisirs et les Jours").
Mas o navio tinha fax e meu escritório sabia disso. Coisas da fatalidade, não previstas nem pelo velho Proust. Começaram a chegar, todos os dias, fax e mais fax com notícias do real, prévias eleitorais e coisas de nosso país, que o pessoal usava como biombo para informar problemas das causas em andamento nas férias forenses... Malditos!
Deixei fechados alguns envelopes entregues na cabine. Iria lê-los depois, jamais em dia de jogo, muito menos de jogo da seleção brasileira. E aconteceu um drama.
No dia 17 de julho, a grande final, o capitão do navio avisou aos passageiros que não transmitiria o jogo Brasil e Itália. Gravaria para passar depois, porque estava programada noite de gala com obrigatoriedade de traje a rigor (pênalti) e "black tie", culminando-se com o show, marcado para a hora da transmissão, de um grande mágico.
Em 200 passageiros, éramos apenas 16 brasileiros e nenhum italiano. Alemães, irlandeses, norte-americanos não se interessavam pela última partida. Preferiam o mágico, se bem que a direção do navio entendeu mais seguro não transmitir a final da Copa para assegurar público ao prestidigitador.
Enfim, estávamos navegando e ameaçados de não assistir a grande noite do tetra. Nossos patrícios, quando souberam da notícia, vieram todos à minha cabine. Você é advogado e deve achar uma saída para nossa aflição. Temos direito. O programa turístico anunciava a transmissão dos jogos da Copa. Logo a finalíssima, não transmitem?
Sim, tínhamos direito, mas estávamos longe dos portos, no belo mar civilizado da Riviera, onde a máxima autoridade era o capitão. Para quem iríamos requerer uma medida cautelar antes que se consumasse a irreparável lesão?
Chamei o encarregado dos espetáculos e ponderei, argumentei, insisti. Nada. Ordem era ordem. A noite de gala não podia sofrer alterações.
Tive uma idéia: mandei avisar o capitão. Ou transmitia o jogo, ou os brasileiros todos, pelo menos os homens, iriam de "short", calção de banho, sentar-se no palco do mágico e o "show" não se realizaria, a não ser que fôssemos todos presos. Era um motim anunciado e os brasileiros toparam.
Pelas leis internacionais teria o comandante de entregar os presos, com acusação formal, ao juiz de direito do primeiro porto, porto italiano, juiz italiano. Queria ver como se comportaria o magistrado ao saber que a transmissão do jogo Brasil e Itália fora suspenso em desacordo com o contrato.
É possível que o capitão acabasse preso, porque chegaríamos, no dia seguinte, a Portofino, na Riviera do Levante, da brava gente do Mediterrâneo da Toscânia, sangue quente e fanática por futebol, felicíssima com o vice-campeonato, coisa que brasileiro ainda não entende.
Creio que o capitão sentiu o perigo e mandou seu ajudante de ordem à minha cabine, com uma garrafa de champanhe (que não bebo e não gosto), flores para minha mulher e chocolate para minha filha, com a notícia de que o jogo seria transmitido ao vivo. Festa geral para sofrermos o que todos aqui já sabem.
Assim vimos nossos atletas chegarem ao tetracampeonato, verdadeiros heróis, pois jogaram sem meio-de-campo, sem técnico, sem substituições inteligentes e ganharam, ou, pelo menos não foram vencidos, o que lhes deu o direito à taça, conquistada, infelizmente, pelo não-gol, sobretudo o de Baggio.
Com a alma leve e alegre, abri os envelopes dos faxes, acumulados há dias. Real mais forte do que o dólar e, de repente, o texto de uma lei nova, publicada precisamente no dia 29 de junho, quando peguei aquele avião em Cumbica. A lei 8.898/94. Maravilha.
Alterou o Código de Processo Civil (artigos 603, 604, 605 e 609) modernizando, afinal, o processo de liquidação de sentença. Eliminou o cálculo do contador nas liquidações por arbitramento e por artigos, dando ao credor competência para atualizar o crédito quando isso depender apenas de operações aritméticas. Institui para o devedor o mesmo direito, quando o credor dormir no ponto. Citação direta do advogado constituído nos autos.
Acaba com a apelação porque não mais existe a homologação. Contribuirá para o descongestionamento dos tribunais e deixará os advogados um pouco menos estressados com aquelas inúteis demoras provocadas pela chicana dos devedores. Enfim, ajuda a combater um dos males de nossa Justiça: a lentidão.
Não sei se o tetra influiu: fiquei radiante com a nova lei. Não resolve tudo, mas começou-se algo de eficiente no rumo da velocidade processual. Quando voltei ao Brasil, e ao batente da advocacia, tive curiosa surpresa no Judiciário: todos os juízes sabiam e comemoravam o tetra, mas pouquíssimos conheciam a nova lei, que entrou em vigor 60 dias após a publicação.
Embora a norma processual seja de aplicação imediata, há muito juiz ignorando a boa nova, sobretudo na execução por quantia certa contra a Fazenda Pública e nas prestações alimentícias, claramente beneficiadas pelas regras gerais supervenientes e que as antecedem no direito processual codificado.
Na crucial questão de morosidade da Justiça, sempre colocamos a culpa, por óbvio, no legislador, uma espécie de Parreira que nada entende de meio-de-campo.
Agora, depois de haver surgido a lei corrigindo ao menos esse ponto de entrave, dentre tantos que nos atormentam, não podem os magistrados continuar prestigiando a mágica sem graça do antigo sistema, chutando a bola fora.
Esse privilégio pertence apenas aos capitães em circunstâncias especiais, como a de Baggio, que chutou "sopra la porta", para tristeza da Itália, mas para a glória e alegria dos brasileiros.
Vamos liquidar logo as sentenças, como liquidamos o tetra, posto que "legem habemus".

JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS, 62, é advogado em São Paulo. Foi
consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).

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