São Paulo, sexta-feira, 25 de novembro de 1994
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Chão, miséria e pecado

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Acabei de ler os jornais. Paranóia à parte, estou aterrado. Lá fora, o Sol convida à praia ou à volta na Lagoa. Mas, a acreditar nas folhas, a bala perdida me espera.
Tampouco adianta ficar em casa, o assalto é iminente. Mesmo assim resolvo sair: minhas duas setters não cultivam o condenável vício de ler jornais e ficariam frustradas sem o habitual passeio das manhãs.
Evito a Praia do Diabo, dirijo-me às Paineiras, onde Mila tem amigos e Títi gosta de cheirar as flores que se debruçam sobre as ruínas de velhos muros coloniais. Lá em cima, estou melhor do que no Passeio dos Filósofos, em Heidelberg: o panorama é maior e melhor.
Em vez do rio Neckar, tenho a Lagoa, o mar, a baía, a formidável pedra, negra e nua, da Gávea. E, do outro lado, muito branco, recortado no céu azul, o Cristo que está pegando, sem estrilar, a pesadíssima barra que atravessamos.
Somos uma cidade abagunçada, mas qual a urbe de mais de um milhão de habitantes que não apresenta feridas e chagas? Discute-se agora a violência, o crime organizado que parece exclusividade do Rio.
O próprio fato de o assunto ser prioritário na mídia revela que aqui se faz ou pretende fazer qualquer coisa contra a violência. Tivemos massacres e sequestros, mas temos o maior índice de delitos apurados e punidos. Para ficar no exemplo à mão: a chacina de Vigário Geral tem detidos. A de certa penitenciária não tem culpados, todos livraram a cara.
É no Rio, também, que o número de resgates de pessoas sequestradas é mais alto.
Bem, o argumento não conta. Ainda hoje posso ser morto ou assaltado. É o preço que pago pela pouco saudável condição de carioca. E, afinal, o que é ser carioca?
Simplificando: ser carioca é gostar de ovo frito em cima de qualquer prato. É amar esse pedaço de chão, miséria e pecado. É viver sem esquecer que um dia irá para o Caju, cemitério decente: o São João Batista, na Zona Sul, não é confiável.

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