São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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A discreta arte da punição

LUÍS FRANCISCO CARVALHO Fº
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Quando o país decide por uma intervenção militar no coração geográfico do Rio de Janeiro, para combater o crime e romper as raízes que mantém com a comunidade, mais do que nunca, é útil se lembrar do marquês de Beccaria. Amanhã faz 200 anos que ele morreu e seu famoso livro, "Dos Delitos e das Penas", ainda é referência obrigatória para o estabelecimento das regras da repressão.
Até então confundiam-se os conceitos de crime e de pecado. A punição era um espetáculo público de horror. Considerava-se a tortura um método legítimo de se descobrir a verdade. Eram prescritas punições diversas para infratores de classes sociais diferentes.
Beccaria propôs à Europa o "doce império da razão". Seu livro é uma análise crítica do sistema punitivo em vigor no século 18, constituído em torno da monarquia absoluta e da intransigência católica, e, ao mesmo tempo, uma receita a ser adotada "pelos governos sábios". Em vez de consagrar o suplício, "a pena deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcional ao delito e determinada pela lei".
Apenas sete anos separam sua primeira edição (Livorno, 1764) da escandalosa execução de Damiens (Paris, 1757), condenado à morte por atentar contra a vida de Luís 15, rei da França. O episódio é conhecido e serve de abertura para "Vigiar e Punir", de Foucault: "As cordas tão apertadas pelos homens que puxavam as extremidades faziam-no sofrer dores inexprimíveis...".
Era preciso "suavizar os costumes". As bases de seu pensamento humanista ("o legislador deve ser indulgente, humano, e a lei, inexorável") se sustentam num princípio racional aplicado a praticamente todos os conceitos: o que não é "útil e necessário" não convém subsistir no Direito Penal.
Beccaria define como um "costume bárbaro" a publicação das leis em "língua morta" e defende a igualdade dos homens diante do crime e da Justiça Criminal. Demonstra que são motivos "frívolos" que justificavam a desvalorização dos testemunhos das mulheres e dos condenados. Abomina a tortura ("é absurdo exigir que um homem seja acusador de si mesmo"). Combate a discricionariedade do juiz na interpretação da lei e nos decretos das prisões.
Ninguém antes dele havia sustentado a ilegitimidade moral da pena de morte. Nem Montesquieu, nem Rousseau, nem Voltaire. Foi muito além da crítica humanista do suplício e dos exageros das penas corporais. Seu livro rompeu a idéia de que a punição extrema era inevitável.
O argumento contratualista utilizado por Beccaria contra a pena de morte foi rejeitado com certo desdém. Dizia que a vontade geral é o resultado de vontades particulares e seria ilógico supor que, na configuração desse pacto primitivo, o homem tenha dado aos outros o direito de tirar-lhes a vida. Para Kant, que sustentava a lei de Talião (se "o criminoso cometeu uma morte, ele também deve morrer"), a tese não passa de um sofisma e de uma falsa concepção do direito, Hegel também o criticou. O que, convenhamos, não é pouca coisa.
Pode-se acusar a obra de Beccaria de conter passagens incongruentes. Contudo, a teoria de que a pena capital não é necessária ("o rigor do castigo causa menos efeito que a duração da pena") nem útil ("pelo exemplo de atrocidade que dá ao homem") não foi desautorizado pela história. Passados mais de 200 anos e observando-se as experiências de diversos países, como os Estados Unidos nas décadas de 60 e 70, nunca se demonstrou, estatisticamente, que a abolição da pena de morte é capaz de estimular o crime ou vice-versa.
O livro apareceu sob absoluto anonimato. Só a quarta edição, lançada em 1766, trouxe as indicações do nome do autor e do local de impressão. O sucesso foi imediato e extraordinário. Em dez anos, o livro já havia sido traduzido em sete línguas e se espalhado pela Europa; França e Alemanha (1766), Inglaterra (1767), Holanda (1768), Suécia (1770), Polônia (1772) e Espanha (1774). Curiosamente, o primeiro tradutor francês (Morellet) tomou a iniciativa de, por conta própria, reordenar os capítulos do livro, fórmula que acabou sendo acatada pelo próprio autor e se tornou definitiva.
Um dos méritos atribuídos a Beccaria, como diz um historiador português, é o de "captar e formular um conjunto de idéias que andava no ar". Panfleto ou ensaio, não importa, o fato é que o direito penal se modificou profundamente desde então.
"Dos Delitos e das Penas" não teve apenas impacto editorial. As "Instruções para o Código da Rússia", de 1767, são consideradas um decalque dos pensamentos de Montesquieu e Beccaria. Em 1786 é banida a pena de morte do território da Toscana, providência adotada também, no ano seguinte, pela Áustria.
Os estilhaços da Revolução Francesa reprimiram esse processo imediato de abolição (a pena de morte voltou a ter vigência nos dois países) em 1790 e 1795, respectivamente), que só foi retomado na segunda metade do século 19. Mas as reformas eram inevitáveis. Até mesmo a guilhotina (1792) simbolizou uma mudança radical de costume: uma morte rápida e igual para todos os infratores.
O fato é que a premissa da utilidade e da necessidade das penas se tornou uma engrenagem de vida própria, capaz de varrer dos códigos hipóteses de punição consideradas legítimas
até por Beccaria, como a escravidão perpétua, o banimento e o confisco. A busca contemporânea de punições alternativas para a pena de prisão (misturavam-se, naquela época, numa mesma masmorra, o "inocente suspeito e o criminoso convicto"...) é um capítulo ainda não terminado dessa evolução civil.
Defensor ardoroso da pena pronta ("quanto mais rápida, mais sentido faz"), Beccaria deixa uma advertência para os defensores da agilização dos processos: "Formalidades e criteriosas procrastinações são necessárias, ou porque não deixam nada à arbitrariedade do juiz, ou porque fazem compreender ao povo que os julgamentos são feitos com solenidade e segundo regras, e não precipitadamente ditados pelo interesse."
O que hoje se propõe como solução mágica para o combate do crime organizado, a delação premiada, o oferecimento de impunidade ou outros benefícios ao criminoso que trair seus companheiros, provocava uma certa desconfiança na concepção moralista de Beccaria: o expediente apresenta "certas vantagens", mas não está isento de "perigos" porque a traição "repugna aos próprios celerados".
E diante da possibilidade de "denúncias anônimas", por um número de telefone colocado pelo Exército à disposição da população do Rio de Janeiro, não se pode esquecer da áspera crítica que formulou às "acusações secretas", para ele, "o escudo mais sólido da tirania".
O marquês de Beccaria sustentou, aos 26 anos, que "não é necessário fazer do Estado uma prisão". Pelo menos enquanto essa frase conservar algum sentido, esse pequeno livro continua atual.

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