São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Deve-se legalizar a cocaína'

Colocar os militares para combater o tráfico ameaça a democracia e abre as portas para a corrupção do Exército, como ocorreu com a polícia
A seguir, Vargas Llosa fala sobre a influência crescente dos evangélicos na América Latina e defende a descriminalização de drogas como maconha e cocaína.
Folha - Fujimori foi eleito no Peru com o apoio dos evangélicos. No Brasil, essas seitas são cada vez mais influentes, sobretudo junto aos mais pobres. O sr. não acha que o desencanto com a política tradicional pode trazer o risco de que muita gente se deixe levar por líderes messiânicos e irracionalistas?
Llosa - Sem nenhuma dúvida. Para mim, o fenômeno é este: por uma parte, em países que viveram períodos terríveis de empobrecimento, de crise social e violência política, entende-se muito bem que para grandes setores a realidade de repente deixe de ser racional, lógica, e que então haja um movimento rumo à pura irracionalidade para explicar a vida, explicar um mundo que se tornou totalmente incompreensível. Esse é um terreno propício para as doutrinas apocalípticas, messiânicas.
Por outra parte, esse fenômeno tem uma vertente religiosa. Que aconteceu? A Igreja Católica é uma igreja que, por muitas razões, foi perdendo enraizamento justamente nos setores mais marginalizados e pobres de nossos países.
A Igreja Católica, queiram ou não seus sacerdotes, passou a fazer parte do "establishment", e do ponto de vista de muitos setores é percebida como o poder, como a ordem, como algo muito remoto e distanciado das necessidades diárias dos pobres, por mais que haja tantos sacerdotes e freiras que façam um esforço contrário.
Isso deixa enormes setores da sociedade totalmente desguarnecidos espiritualmente. Esse vácuo está sendo preenchido por outros pastores, os evangélicos, que chegam como? Com a militância do pioneiro, do missionário, com uma enorme agressividade, e atraem esses setores mais pobres e desesperados.
Folha - Que são também os mais ignorantes, em geral...
Llosa - Claro. Sabe, há uma interessantíssima investigação dirigida por um professor da Universidade de Boston, Peter Berger.
Há muitos anos ele realiza uma pesquisa na América Latina sobre o avanço das igrejas evangélicas. Bem, os primeiros resultados são impressionantes: em países como a Guatemala, 50% da população está sob influência dessas igrejas; no Chile, 40%.
O que diz Berger? Diz que uma das razões para o êxito das igrejas evangélicas é que a Igreja Católica não tem padres suficientes para chegar a todos os setores. Há setores que estão completamente abandonados pela Igreja.
Mas outra das razões do êxito é que, precisamente por ser desamparada, vazia e rotineira a existência dos marginalizados, tem grande chance de preenchê-la uma igreja como as evangélicas –que exigem uma dedicação total, que não exigem somente a missa dos domingos, mas 24 horas por dia de militância, e que convertem a todos os seus membros em apóstolos e missionários.
Além disso, elas têm esse pragmatismo característico de todas as igrejas norte-americanas, organizando imediatamente sistemas de socorro, de ajuda mútua, e além de tudo impondo exigências rígidas, proibindo o álcool, as drogas, sendo tão puritanas em matéria sexual. As mulheres, sobretudo, sentem que isso cria uma ordem, defende as famílias.
Folha - Justamente quando fez sua "opção pelos pobres" a Igreja começou a perdê-los?
Llosa - Sim, porque o que os pobres queriam da Igreja era a Igreja, não a revolução. Os padres lhes ofereciam a revolução, às vezes a bomba, a guerrilha.
Na Colômbia, o pior exército terrorista, o mais destrutivo e cruel, é dirigido por um padre espanhol. Na América Central são comuns os padres revolucionários. Eles criaram uma confusão tal que muitos pobres simplesmente já não sentem que a religião lhes preenche a vida. Então chegaram os evangélicos.
Folha - O sr. estudou em colégios de padres, mas parece não ter muita simpatia pela Igreja...
Llosa - Eu não sou religioso, mas creio que a religião tem uma função na sociedade. Creio que uma sociedade que não vive uma vida religiosa é uma sociedade que entra rapidamente em um estado de insegurança que é muito perigoso, pois abre a porta a sucedâneos da religião, que podem ser os cultos e seitas mais absolutamente disparatadas.
Acho que as pessoas não podem viver sem uma fé. Os que podem substituir a fé pela cultura, pela moral, são muito poucos, são setores bem pequenos. A maior parte das pessoas precisa de uma fé para sentir que o mundo está ordenado, que há uma esperança.
Acho que, sobretudo em nosso mundo, sem religião não há moral. A religião é que dá moral às pessoas. Somente um setor muito pequeno pode criar uma moral laica. A religião é útil, com a condição de que haja um poder laico que a mantenha em seu lugar. Porque se a religião não fica em seu lugar, e a Igreja toma o poder, ela castra a liberdade do indivíduo, proíbe o divórcio, proíbe o aborto, o controle da natalidade. Estabelece uma ditadura, em suma. Acho importante que haja separação entre Igreja e Estado e liberdade de crença, mas que a sociedade tenha uma vida espiritual intensa, senão o que há é caos e violência.
Folha - O sr. também conhece bem o Exército, pois estudou em colégio militar. Ultimamente, parece que os militares gozam de uma certa reabilitação de prestígio em países como o Peru e o Brasil. No Brasil, muitos vêem a intervenção militar como única saída para o problema do narcotráfico. Como o sr. vê isso?
Llosa - Isso é perigosíssimo. Se uma sociedade civil abdica de sua responsabilidade, naturalmente o Exército vai substituí-la. Quer dizer, vamos voltar ao que foi a tradição autoritária, a tradição dos regimes castrenses que fez de nossos países o que são.
Se os exércitos começam a ocupar o plano da ação política, a cultura democrática desaparece, não? O Exército não é uma instituição criada para fazer serviços de polícia. O resultado mais provável de dar ao Exército esse tipo de obrigações é contaminá-lo, abrir suas portas à corrupção, à sua instrumentalização. Se colocarmos o Exército na luta contra a droga, acontecerá com ele o que acontece à polícia.
Folha - Qual seria uma maneira civilizada, democrática e ao mesmo tempo eficiente de enfrentar o problema da violência ligada ao narcotráfico?
Llosa - Creio que a luta contra a droga é uma luta em grande parte perdida. Porque a droga é um problema basicamente econômico. É um problema criminal em segunda instância.
A indústria do narcotráfico tem essa força porque gera lucros extraordinários. E em muitos lugares não há indústrias legais que possam competir, que possam oferecer uma alternativa a ela.
Qual é, então, a solução? Penso que a solução é a que propôs, por exemplo, a "The Economist": que os países produtores e consumidores se ponham de acordo e legalizem pelo menos as drogas leves. A descriminalização das drogas leves eliminaria ou reduziria sensivelmente a criminalidade.
Folha - Quais seriam essas drogas? A maconha e o haxixe?
Llosa - E também a cocaína. A imensa quantidade de recursos hoje gasta na repressão, e que ficaria liberada depois da descriminalização, seria empregada, em parte, em uma política pedagógica –por exemplo, como a que vem sendo desenvolvida no combate ao fumo, que é de uma eficácia extraordinária, pois reduziu de maneira drástica o consumo de cigarro.
Outra parte desses recursos seria gasta na repressão ao comércio das drogas pesadas. Entretanto, essa é uma política que só se pode levar a cabo mediante acordos internacionais, não pode ser adotada isoladamente por um país produtor ou um país consumidor.
Folha - Haveria também resistências culturais muito grandes.
Llosa - Sim, claro. Como em tudo. Todas as grandes reformas têm de vencer resistências. Em última instância, é sempre um combate de idéias, não de política.
De todo modo, devemos aceitar que o problema da droga é um problema gigantesco, no qual até agora não temos vitórias, só temos derrotas. E derrotas de dimensões imensas, tanto para os países ricos como para os pobres.
Houve um manifesto sobre o problema, encabeçado por García Márquez, que eu não quis assinar porque o considerei injusto. Dizia o manifesto: "Os Estados Unidos não fazem nada para combater as drogas e pedem a nós, latino-americanos, que o façamos etc.".
Isso não é verdade. Os Estados Unidos investem somas demenciais nesse combate, mas não conseguem nada. Eles continuam aumentando o investimento na repressão, e o consumo continua crescendo. Então, evidentemente, o caminho não é esse.
Se uma pessoa adulta quer tomar álcool, fumar cigarros, ela está atentando contra a sua saúde. E a sociedade chegou à conclusão de que lhe deve permitir fazê-lo, porque é sua responsabilidade pessoal.
Se esse mesmo senhor quer fumar maconha ou cheirar cocaína, então que ele adquira essas drogas dentro de uma regulamentação. Uma regulamentação que proíba que essas drogas se coloquem em mãos de menores ou em mãos irresponsáveis, mas que elimine toda essa monstruosa indústria delituosa que existe hoje em dia em torno da droga. E, por outro lado, se respeita o direito dos indivíduos responsáveis de fazerem o que querem com sua vida e com seu corpo.
Continua na pág 6-6

Texto Anterior: 'Ideologia cega os escritores'
Próximo Texto: 'A vanguarda me aborrece'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.