São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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A arte de se associar

Uma sociedade civil com redes de interação está nascendo

ASPÁSIA CAMARGO

Há mais de cem anos um nobre francês, Alexis de Tocqueville, anunciou que a força da democracia americana não residia apenas no fato de suas leis serem boas, mas sobretudo na existência de uma sociedade que conhecia, mais do que qualquer outra, a sabedoria e os mistérios da "arte de se associar".
Robert Putnam, da Universidade de Harvard (EUA), resolveu tentar demonstrar a validade desta idéia, e depois de uma década de pesquisa, pôde concluir que o espírito associativo eleva de maneira surpreendente a qualidade dos serviços públicos e da própria vida.
A inventividade e a disseminação de idéias penetram pelos circuitos de comunicação cultural que podem ser formados através de um coro de igreja ou de um clube de futebol, que funcione como núcleo de controle coletivo.
No Brasil, infelizmente, não tivemos esta tradição em nossa cultura política e a emergência da sociedade civil confunde-se mais com a capacidade de pressionar e reivindicar, do que de resolver por si mesma seus próprios problemas. Os primeiros migrantes que povoaram os EUA construíram eles mesmos a sua igreja e a sua escola, quando não alfabetizavam seus filhos para que pudessem ser cidadãos e ler a Bíblia.
Hoje, ao contrário, não temos dúvidas de que a onda de violência que abala no mundo inteiro as grandes metrópoles, especialmente americanas, é fruto do colapso total da vida associativa e da segurança pública destruída pelo anonimato das relações sociais, inclusive entre vizinhos. O individualismo solitário deixa cada indivíduo à mercê de um inimigo oculto, sempre protegido pela indiferença os demais.
Tudo indica, porém, que o Brasil está mudando. A proliferação de seitas protestantes, promovendo o espírito gregário, a solidariedade e a autoproteção, como demonstrou censo recente do Iser, é o sinal evidente de que uma verdadeira sociedade civil, com novas redes de interação, está nascendo. Enquanto o Estado se enxuga até o limite extremo de só lhe restar pele e osso, a sociedade organizada se expande.
Este é o caso surpreendente e interessante da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), sociedade que congrega os centros de pesquisa e pós-graduação de ciências sociais e que há 18 anos se reúne anualmente em Caxambu (MG), transformando este congraçamento anual em ponto de discussões, de troca de informações, alimentado por número crescente de participantes, conferências internacionais e trabalhos escritos.
Os inscritos aumentam a cada ano, chegando hoje a cerca de 1.000, reunindo estrelas consagradas e emergentes, além de pós-graduandos ávidos de convívio intelectual, inclusive com seus mestres, e de boa informação. Assim funcionava a França dos bons tempos: mestres como Bachelard recebiam em casa, nas tardes de sábado, seus alunos.
Na Anpocs reúnem-se em grupos, formal ou informalmente, pessoas para discutir questões polêmicas sobre mudanças na cultura política, reforma do Estado, mau funcionamento dos três Poderes e tendências contraditórias da globalização. As ONGs e os meninos de rua, a intervenção do Exército no Rio entraram na agenda junto com a corrupção no mundo e a destruição liberal do velho trabalhismo inglês.
Tudo isto consome dias e noites seguidos, não dispensando formas de confraternização que os antropólogos presentes sabem que são rituais importantes para produzir solidariedade, superar diferenças partidárias e ideológicas, tal como o coro de Florença citado por Putnam que acabou três ou quatro séculos mais tarde contribuindo para melhorar a Previdência Social!
"E o que é que o Brasil ganha com isto?", perguntarão alguns. Tudo e nada. Os ganhos são imateriais mas substantivos. A inteligência do país discute seus problemas acima das ideologias e dissemina conhecimentos de alcance nacional e internacional que serão absorvidos, polemizados e publicados ao longo do ano seguinte.
É o que se poderia chamar de "efeito multiplicador de inteligência" na guerra contra a obsolescência dos aparatos institucionais, a burocratização excessiva e a microcefalia.
Idéias extravagantes ou inconsistentes morrem antes de nascer, aqui mesmo. As boas disseminam-se rapidamente. Aos trancos e barrancos, o Brasil caminha no sentido da horizontalidade e constrói o livre mercado de idéias lenta e gradualmente.

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