São Paulo, segunda-feira, 28 de novembro de 1994
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'Índio quer ser aculturado', diz governador do Amazonas

REINALDO AZEVEDO
EDITOR-ADJUNTO DE POLÍTICA

Gilberto Mestrinho, 66, é o mais politicamente incorreto de quantos governadores tenham sido eleitos no Brasil.
Supremo mandatário do povo e da floresta do Amazonas pela terceira vez –duas pelo PMDB–, o "Boto Tucuxi", como é chamado, apara os argumentos dos adversários com a monocórdica constância de uma moto-serra.
Para ele, o discurso de preservação da Amazônia não passa de uma vestimenta clorofilada dos cartéis da madeira e do minério para evitar que o Brasil passe a disputar esses mercados.
Se depender de Mestrinho, o sociólogo tucano Hélio Jaguaribe não ficará sozinho em sua vocação integracionista de José de Anchieta do fim do século: "O melhor destino para o índio é deixar de ser índio", diz o neto de tapuia.
Mestrinho é autor de uma tese que provocaria arrepios em sociólogos e antropólogos, ainda mais agora que eles, simbolicamente ao menos, chegam ao poder.
Para ele, a produtividade da Zona Franca de Manaus é "mais alta que a japonesa" porque o "verde exuberante" predispõe o caboclo para "tarefas repetitivas".
Mestrinho esteve em São Paulo, na semana passada, para lançar o livro "Amazônia: Terra Verde, Sonho da Humanidade (Editora Três)", onde detalha as suas teses de "um simples caboclo, formado na escola da vida".
O livro teve a coordenação editorial de Egberto Batista, ex-todo poderoso do collorismo.
Seguem, abaixo, os principais trechos da entrevista concedida à Folha, na última terça–feira, num luxuoso flat da alameda Lorena, nos Jardins.
Folha - O senhor é satanizado pelos ecologistas como aquele que quer destruir a Amazônia. É uma posição incômoda essa?
Gilberto Mestrinho - Quem primeiro falou no Brasil em manejo florestal inteligente fui eu. Podemos enriquecer a floresta com espécimes de maior valor. Em vez de ter cinco madeiras de lei por hectare, podemos ter 25.
Folha - Alguns estudos apontam que a devastação atinge 12% da floresta.
Mestrinho - Em toda a Amazônia, hoje, apenas 5,8% da floresta foi derrubado. É que muita gente pensava que os campos gerais de Roraima eram resultantes de desmatamento. Aquilo é natural.
Folha - O sr. tem relacionado o discurso preservacionista ao interesse de empresas estrangeiras. Quando faz a defesa da exploração da madeira na Amazônia, não vai ao encontro do interesse das empresas madeireiras, muitas estrangeiras?
Mestrinho - Não. Os cartéis madeireiros são dominados pelo Canadá, Estados Unidos, Suécia e Finlândia. Naturalmente, eles não querem concorrente. Uma árvore, na Finlândia, leva 80 anos para dar três metros cúbicos de madeira. Na várzea amazônica, em dez anos, uma árvore dá 10 metros cúbicos.
Folha - O que o sr. acha de experiências como a Cooperativa de Xapuri, no Acre, que nasceu com Chico Mendes a partir de uma reserva extrativista?
Mestrinho - Aquele negócio foi uma experiência boa porque não tinha outra alternativa. Hoje, é motivo mais de disputa política do que de atividade econômica.
Folha - Onde chegaram as indústrias madeireira e mineral, não continua a pobreza?
Mestrinho - O padrão de vida de regiões onde há exploração mineral é incrivelmente melhor do que a de qualquer outra região do interior do Amazonas.
Folha - Como o sr. vê as acusações de que a Zona Franca de Manaus acaba resultando em renúncia fiscal que beneficia as empresas do sul do Brasil?
Mestrinho - Em São Paulo, a indústria automobilística importa o carro inteiro e dizem que é avanço tecnológico. Estamos exportando gabinetes plásticos para os EUA.
Folha - Agora, se já há uma indústria de exportação, por que os incentivos fiscais?
Mestrinho - A Zona Franca de Manaus foi responsável pela integração de toda a chamada Amazônia Ocidental.
Folha - Não há muitas empresas do sul que estão usando os incentivos da Zona Franca só para montar equipamentos e acabam trazendo dinheiro de volta para o sul?
Mestrinho - Quem sustenta hoje o Amazonas, Estados vizinhos e prefeituras é a Zona Franca. Quando se montou a indústria automobilística aqui em São Paulo, foi com altos incentivos também.
Folha - Não é uma maluquice ter um centro de produção eletroeletrônica no meio da maior floresta do mundo?
Mestrinho - Não. A produtividade do caboclo amazônico é maior do que a japonesa. As atividades repetitivas, que causam trauma no mundo desenvolvido, são o ideal para o nosso homem.
Folha - Por quê?
Mestrinho - É da natureza do caboclo. Ele é capaz de sentar na canoa, remar o dia inteiro na mesma posição, no mesmo ritmo. Ele deita na rede às 9h da manhã e fica na mesma posição até as 3h30.
Folha - É idiotia rural?
Mestrinho - Não. É capacidade de relaxamento total. São mais orientais do que os orientais. Aquelas moças passam o dia inteiro fazendo aquela coisa ali, sem problema nenhum, nem nada. Talvez, por causa da monotonia da região, aquela natureza exuberante, sempre calma, o verde constante... Cria-se esse clima de paz interior, e as pessoas não têm trauma.
Folha - Durante a Eco-92, discutiu-se a questão da biodiversidade e a tentativa de o Brasil ter a patente das espécies amazônicas. Como vê essa discussão?
Mestrinho - Quase 10% dos produtos medicinais do mundo são feitos com princípios ativos de plantas da Amazônia, e nós não temos rendimento nenhum. Isso exige uma grande e paciente negociação das autoridades brasileiras.
Folha - Há estudos indicando que 10.000 metros quadrados de mata na Amazônia concentram mais espécies do que toda a Europa. Como se concilia o avanço sobre a floresta com o conhecimento criterioso dessas espécies?
Mestrinho - É fundamental, primeiro, fazer-se um zoneamento econômico-ecológico. Em segundo lugar, é preciso formular leis ambientais novas. Em terceiro, é necessária uma reformulação dos órgãos fiscalizadores. Há muitas amazônias dentro de uma só. São muitos ecossistemas.
Folha - O sr. reconhece a seriedade de alguma das ONGs (organizações não-governamentais) em defesa do meio ambiente?
Mestrinho - Há algumas que são sérias e outras que só cuidam de interesses econômicos. Antes da Rio-92, nós catalogamos 219 organizações não-governamentais de defesa da Amazônia. Lá mesmo, não conhecemos nenhuma.
Folha - o sr. vê nisso uma orquestração de empresas e governos estrangeiros?
Mestrinho - Mais de grupos econômicos. O pessoal do minério e da madeira não quer exploração na Amazônia para não ter concorrentes no mercado.
Folha - O sociólogo Hélio Jaguaribe, do PSDB, defende a completa aculturação do índio. O que o sr. acha?
Mestrinho - É o caminho natural. É o que o índio quer. Ele interpretou o sentimento do índio. Se não houvesse essa possibilidade de integração, eu jamais teria sido governador do Amazonas três vezes, porque a minha avó era índia.
Eu mantenho um convívio muito bom com o verdadeiro índio. Os protetores de índios não gostam de mim, mas o índio mesmo gosta.
O índio quer melhorar a saúde, a habitação, quer melhorar os métodos de produção. Ele quer desfrutar da televisão, do som.
Folha - O melhor futuro do índio é deixar de ser índio?
Mestrinho - Sim. Ele pode ser como o índio americano. Uma vez, fiquei hospedado numa reserva indígena nos Estados Unidos, no hotel dos índios. À noite, eles chegavam nos cadillacs, trocavam de roupa, se vestiam de índio, faziam o show e depois iam embora.
Folha - Sei. É um índio de Las Vegas...
Mestrinho - Pois é. Eles atingiram um padrão desenvolvido. O índio no Brasil é um miserável, tem uma vida miserável. Você imagina o que é o sujeito viver no meio da floresta...
Folha - Esse índio miserável não é especialmente aquele que entrou em contato com a civilização ocidental sem assimilá-la?
Mestrinho - Não. Todo índio que vive em contato com a civilização vive melhor. Os ticunas bebiam muito, brigavam muito entre eles. Apareceu um missionário e acabou com a bebida. Chegou até a um excesso. As índias andam até de vestido comprido...
Folha - Mas isso não é ruim?
Mestrinho - Mas ele deixou de beber, deixou de brigar. Se chegarem lá bons costumes, ele melhorará. Se chegar o garimpeiro, desesperado, violenta, faz o diabo.
Folha - Para chegar a esse flat, o sr. atravessou favelas em São Paulo. Não é melhor o índio lá na civilização dele, com a cultura dele, a ser um marginal da civilização ocidental?
Mestrinho - O índio vai ficar no meio dele, mas você leva lá o instrumento agrícola que ele atinge um rendimento melhor de produção do que o que ele tem. Você ensina o que plantar, a utilizar medicamentos e hábitos de higiene.
Folha - Como o sr. recebeu o apelido de "Boto Tucuxi"? Segundo a lenda, o boto é um namorador. É por isso?
Mestrinho - Não. No meu primeiro governo, não havia, em Manaus, luz elétrica, água encanada, asfalto, hospitais. Fiz tudo isso. A oposição dizia: "Não fez nada". Eu ia para os comícios e perguntava: "Quer dizer que quem botou luz em Manaus foi o boto?" E o apelido pegou.
Folha - O escritor amazonense Márcio Souza contribuiu para divulgar o apelido com a publicação do livro "A Resistível Ascensão do Boto Tucuxi", que faz críticas severas ao senhor.
Mestrinho - Hoje é meu amigo.
Folha - Quem mudou?
Mestrinho - Eu acho que o Márcio mudou. O problema é que ele não me conhecia. Eu até fiz um prefácio de um livro dele, "História do Amazonas".
Folha - O sr. vê algum nome possível para liderar o PMDB?
Mestrinho - Eu só sou um político regional.
Folha - Não vai querer comprar essa briga também?
Mestrinho - É. Não vai dar.

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