São Paulo, quarta-feira, 30 de novembro de 1994
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"Rashomon" faz o elogio da mentira

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Foi "Rashomon", título referente ao portal de um templo em ruínas da Kyoto do século 12, a porta de entrada do cinema japonês no Ocidente. Mas o primeiro prêmio no Festival de Veneza em 1951 fez do filme antes um motivo de controvérsia do que reconhecimento, tanto entre ocidentais, quanto entre os japoneses.
Sabe-se que, a partir daí, Kurosawa foi acusado, sobretudo pelos críticos da "nouvelle vague" (Rohmer, Rivette, Godard) de excessiva americanização, em contraposição a Mizoguchi, supostamente mais fiel aos traços japoneses. No Japão, "Rashomon" fora recusado pela Toho, produtora à qual pertencia o diretor, e, não fosse o sucesso em Veneza, teria permanecido nas prateleiras da Daiei, que aceitara produzi-lo, mas o julgava incompreensível.
A dificuldade em satisfazer expectativas e definições constitui a razão mesma pela qual "Rashomon" ainda permanece, quando já ninguém mais se lembra da abundante produção japonesa de filmes de época. O que Kurosawa promove aqui é justamente um coquetel de estilos, um exercício virtuosístico das várias maneiras de se contar uma história.
Não que tenha adotado a fórmula metalinguística e antinarrativa tornada habitual num certo cinema europeu contemporâneo. Se afinidades há, seriam antes com Orson Welles, que também apreciava ligar a forma narrativa à procura da verdade. De dois contos de Ryonosuke Akutagawa, Kurosawa retirou, de um, o título, de outro ("Num Bosque"), o enredo, referente às várias versões de um crime dadas por diferentes pessoas.
Abrigados da chuva num templo em ruínas, um sacerdote e um lenhador narram a um plebeu o caso de uma mulher estuprada num bosque por um bandido, ao que se seguiu o suposto assassinato de seu marido. O relato de ambos não se refere apenas a fatos testemunhados, mas também aos depoimentos dados à polícia pelo bandido, o policial que o prendeu, a dama violentada e até mesmo o marido morto, que se manifesta através de uma médium.
A mesma breve sequência de ações é reencenada, então, de diferentes maneiras, de acordo com as variantes subjetivas, mentirosas ou não, de cada narrador.
Os cortes rápidos, à moda americana, nas cenas de luta e perseguição, se revezam com planos longos e discursivos que muitos remetem ao teatro "no". Toshiro Mifune, o bandido, se manifesta com o exagero expressionista típico do "novo teatro" ("Shingeki"), então na moda no Japão. E já prefigura, com suas caretas, as gravuras japonesas ("ukiyo-e") das quais será uma cópia fiel em "Os Sete Samurais".
Machiko Kyo, a dama do bosque, cujo véu branco se ergue com a brisa, deixando entrever o rosto de porcelana, é a imagem do sobrenatural, celebrizada a seguir pela mesma Kyo em "Contos da Lua Vaga", de Mizoguchi.
Os vários depoimentos no pátio da prisão, em que os depoentes são filmados sem contracampo, olhando diretamente para a câmera, são técnicas auto-reflexivas que interrompem regularmente a ação e devem tanto às influências ocidentais, já em Akutagawa, quanto ao antiilusionismo típico do teatro japonês. A harmonia com que se combinam essas técnicas faz parecer natural a mensagem humanista do fim, segundo a qual a mentira faz necessariamente parte da verdade e deve ser perdoada.

Vídeo: Rashomon
Direção: Akira Kurosawa
Produção: Japão (1950), 90 minutos
Onde: Concorde (tel. 011/857-7553)

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