São Paulo, quinta-feira, 1 de dezembro de 1994
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A Igreja e a tortura no Borel

FREI BETO

Quando a opressão popular preserva os privilégios da Igreja, esta costuma fazer vistas grossas
FREI BETTO
Em novembro de 1969, o cardeal Agnelo Rossi, arcebispo de São Paulo, visitou no Deops os frades dominicanos envolvidos no caso Marighella. Reteve-se mais tempo com os delegados que com os detentos. À saída, declarou que todos estavam sendo bem tratados e que não constatara torturas.
Frei Fernando e Frei Ivo haviam sido dependurados no pau-de-arara, Frei Giorgio e Frei Tito tinham recebido choques elétricos e surrados com palmatória. Frente à incapacidade de o cardeal perceber o que de fato ocorria no Brasil, o papa Paulo 6º decidiu transferi-lo para Roma, nomeando para o seu lugar o bispo franciscano Paulo Evaristo Arns.
Agora, meu ex-professor de filosofia, padre Olinto Pegoraro, denuncia violências praticadas pelo Exército em moradores do Morro do Borel, no Rio. Em Roma, o cardeal Eugênio Sales prefere desabonar a palavra do sacerdote de sua arquidiocese e, mais realista que o IML, absolver as tropas de intervenção de qualquer ato de violência.
De fato, durante os 21 anos de ditadura militar, a nação percebeu o contraste entre a atuação decisiva do cardeal de São Paulo em favor dos direitos humanos e o procedimento palaciano do cardeal do Rio. Este prefere entender-se diretamente com as autoridades; aquele, com a opinião pública. D. Eugênio confia na palavra de quem ocupa o poder. D. Paulo, por sua índole franciscana, dá ouvidos à versão do oprimido.
Não custa observar que, no Evangelho, não há um só caso em que Jesus tenha preferido se entender com as autoridades, nem quando assassinaram seu primo, João Batista, para culminar uma orgia palaciana, nem quando o acusaram de subverter o povo. Diante do interrogatório de Pilatos, ele preferiu o silêncio. À solicitação de Herodes para que fosse a seu encontro, Jesus recusa qualificando-o de "raposa" (Lucas 13, 32).
Na Igreja Católica, a defesa dos direitos humanos é um dever sagrado. No entanto, variam os métodos. Uns preferem a ação profética que marca a presença do cardeal Arns em São Paulo. Outros, as vias diplomáticas. E há ainda os que se omitem, como a maioria dos prelados argentinos que ainda hoje finge ignorar as 30 mil vítimas abatidas pelo regime militar e a prisão injustificada do capuchinho Antonio Puigjané, que há cinco anos padece no cárcere de Buenos Aires.
Quando um governo forte oprime o povo e limita os direitos da Igreja, os bispos protestam e o Vaticano faz eco. Porém quando a opressão popular preserva os privilégios da instituição eclesiástica, esta costuma fazer vistas grossas. Daí o escândalo de o Estado do Vaticano ter sido um dos raros países do Ocidente a não romperem relações diplomáticas com a ditadura do Haiti, recentemente derrubada.
O Antigo Testamento defende os escravos das arbitrariedades: "Se alguém ferir o seu escravo ou a sua serva com uma vara, e o ferido morrer debaixo de sua mão, será punido" (Êxodo, 21, 20). São Paulo chega a apelar à sua cidadania romana para livrar-se das sevícias (Atos 22, 24). No século 2, Tertuliano, na obra "De Corona", exorta os soldados convertidos à fé cristã a evitarem a tortura. E Santo Agostinho, na "Cidade de Deus", repudia a sua aplicação por tratar-se de pena imposta a quem ainda não se sabe se é culpado. No entanto, a Inquisição tentou sacramentar a tortura.
"Tortura-se o acusado, com o fim de o fazer confessar os seus crimes", reza o Manual dos Inquisidores, de Nicolau Emérico. São Tomás de Aquino, porém, considera a tortura delito mais grave que o homicídio, pois aquela convoca a vítima a ser testemunha de seu próprio opróbrio.
Para a fé cristã, toda pessoa, inclusive o militar que tortura e o bandido que mata, é templo vivo de Deus e, como tal, merece ter a sua integridade preservada. Ao denunciar as torturas sofridas por seus paroquianos, o padre Olinto Pegoraro não fez mais do que cumprir o seu dever de pastor, evitando repetir o silêncio de Roma e dos bispos alemães durante as atrocidades nazistas nos campos de concentração.
Bem adverte Antônio Callado, em seus artigos na Folha, para o risco dessa intervenção militar entre a população civil carioca. Há quem acredite que se trata de uma medida provisória, sem maiores consequências políticas. Como há quem acredite que traficantes moram em favelas.
Se os recursos da sociedade civil, como a Polícia Federal, não são suficientes para devolver ao Rio a paz a que tem direito, pelo menos respeite-se o seu direito de manter controle sobre as ações do Exército, no exercício democrático de cidadania.

CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO (FREI BETTO), 50, frade dominicano e escritor, é membro da Fundação Sueca de Direitos Humanos e autor de "Batismo de Sangue" e "Cartas da Prisão".

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