São Paulo, sexta-feira, 2 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Desadorando um fetiche

ABRAM SZAJMAN

A reforma patrimonial do Estado é a mais importante das reformas estruturais que deverão ocupar a agenda política do Congresso Nacional a partir da posse do novo governo. Trata-se de um tema que tem sido colocado como mera polêmica entre estatistas e privatistas quando, na realidade, é muito mais abrangente do que isso e bem menos ideológico do que nos fazem crer as facções em disputa.
Os privatistas da corrente dita neoliberal, por exemplo, consideram um erro o Estado possuir empresas em qualquer época ou circunstâncias ou, ainda, em qualquer tipo de atividade econômica, estratégica ou não.
Já os estatistas classificam as empresas estatais como sinônimo de soberania nacional e, em alguns casos, como no setor financeiro, de instrumentos ideais de controle das distorções do mercado.
Meu ângulo de análise, como empresário, aponta para o matizamento desta questão, no lugar do maniqueísmo de um eterno retrato em branco e preto.
Penso que, no Brasil, país de escassa poupança privada, o Estado desempenhou, no passado, importante papel de indutor do desenvolvimento, financiando a industrialização, proporcionando a infra-estrutura indispensável ao desenvolvimento, através de empresas estatais.
Siderurgia, usinas hidrelétricas e telecomunicações são exemplos da atuação positiva do Estado em setores e épocas que, aos capitais privados, seria impossível assumir tais desafios.
Rodovias federais, portos e aeroportos são outras áreas nas quais cresceu o patrimônio público, mesmo sem empresas estatais e em benefício direto dos interesses da sociedade.
Ocorre, porém, que com o tempo a possante locomotiva do Estado se desgastou, tornou-se obsoleta e incapaz de apresentar o rendimento dela esperado pela nação. E muitas foram as causas para que isso acontecesse, em especial a inexistência de uma gestão ágil e estável nas estatais e na administração pública.
O aparelhamento político, o empreguismo e o corporativismo, paulatinamente, substituíram o profissionalismo e a eficiência, proporcionando ainda terreno fértil à corrupção.
De instrumento do desenvolvimento, as estatais passaram a ser um fim em si próprias, sendo o exemplo mais grotesco disso a maior delas, a Petrobrás, que, apesar do monopólio –e talvez por isso mesmo–, tornou-se lucrativa em áreas inteiramente alheias a seu objetivo inicial: tornar o país auto-suficiente em petróleo.
Resulta desta análise a necessidade de se redesenhar o papel do Estado, de suas empresas e de seu patrimônio. Não é possível mais aceitar a realidade de escolas e hospitais públicos sucateados, enquanto Vale do Rio Doce, Petrobrás, Telebrás e outras brás fazem a alegria dos especuladores, nacionais e estrangeiros, nas Bolsas de Valores. Não é mais possível o governo continuar a injetar dinheiro em barco furado como o do Lloyd.
O Estado, sozinho, não é mais capaz sequer de recuperar e manter a malha rodoviária federal, onerando com caminhões quebrados e períodos longos de percurso, o transporte de mercadorias ao longo deste país-continente.
O governo deve manter, é claro, empresas em setores estratégicos, bancos de fomento como o BNDES, mas não pode mais sustentar monopólios anacrônicos como os do petróleo e das telecomunicações.
Rodovias, ferrovias e portos devem ser abertos à participação da iniciativa privada, que finalmente está possibilitando, após longo interregno, a volta do transporte ferroviário de passageiros entre as duas maiores cidades do país, Rio e São Paulo.
As sinalizações que tem dado o presidente eleito, Fernando Henrique Cardoso, sobre a reforma patrimonial do Estado são auspiciosas. Mas é também preciso a sociedade mobilizar-se para sensibilizar o futuro Congresso Nacional na promoção de reformas constitucionais indispensáveis ao êxito das mudanças pretendidas.
O patrimônio público não é fetiche a ser adorado e sim bem a ser utilizado –principalmente em favor de quem não tem acesso a escolas, nem à assistência médica, nem a empregos.

Texto Anterior: Cartão latino; Jogo do capital; Nova fronteira; Ruídos regionais; Nova cartografia; Hora de embarcar; Contra a praga; Agenda do secretário
Próximo Texto: Custo da cesta básica inicia o mês com queda de 0,86%
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.