São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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A viagem ao mal de Celine

LEDA TENÓRIO DA MOTTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A viagem ao mal de Céline
Sai tradução brasileira de "Viagem ao Fim da Noite", o primeiro romance do autor
Os bons sentimentos têm raramente lugar na boa literatura, que não é o melhor lugar para o lugar-comum. Mas isso posto, raramente a literatura terá abrigado tão péssimos sentimentos como os que nutre pelo homem de modo geral, e muito em particular pelo judeus, o cavalheiro Louis-Ferdinand Destouches, dito Céline, por isso mesmo geralmente desconhecido como o mais importante escritor francês dete século junto com o judeu Marcel Proust.
E isso fica claro na apresentação da tradução brasileira de "Voyage au Bout de la Nuit" –tradução impecável da anarquizadora escrita falada celiniana –onde Rosa Freire d'Aguiar, a tradutora, se acha visivelmente em apuros diante da mistura de fineza e truculência que caracteriza a obra e a vida quase intratáveis deste filho de uma comerciante de rendas e bordados que, afora escrever como um mestre, no afã mínimo de se equiparar a Proust, se casa com bailarinas ("Voyage" é dedicado a uma delas) e se apresentava, fazendo uso da hipérbole, um dos traços mais marcantes de sua prosa, como "o maior lixo do planeta".
Em seu texto cuidadoso e cheio de informações preciosas, a apresentadora trata de separar o lixo do bordado, pedindo que se feche os olhos para a primeira metade, como aconselhava Henry Miller, citado por ela e seguidor confesso de Céline. Mas o interessante, nos parece, talvez fosse sofrer Céline por inteiro, computando, como fizeram alguns, sem confundir o cidadão e o escritor, as delicadas relações que se estabelecem, em plano inconsciente, entre o fato ficcional e o subjetivo.
A investigação dessas relações levanta a suspeita sutilíssima de um Céline judeu pelo avesso, identificado com o perseguidor nazista. Na lógica dessa pista, o anti-semitismo é um delírio de perseguição invertido. Céline precisa do judeu imundo como causa externa, para não desmoronar internamente. O objetivo de ódio e indipensável à coerência do sujeito instável que ele é, tanto quanto é necessário para explicar projetivamente, em terreno político, a infecção do corpo social francês em guerra. O corpo bem moldado da bailarina, outro objeto altamente investido, seria a contrapartida positiva dessa frágil criação identitária, via o álibi exterior.
Mas enfrentar Céline por completo –do estilista ao colaboracionista, autor de panfletos abomináveis, escritos no período de 37 a 41 e até hoje mantidos sob censura– não é a única dificuldade que ao apresentador se apresenta. Um outro espinho é o caráter hiperbólico de seu irado discurso, e o erro comum, neste caso, é ler em primeiro grau os seus excessos, confundir o enunciado e a enunciação com, tomá-lo pela palavra, enfim, como se fora sincera, ou como se a palavra poética significasse pura e simplesmente o que diz. É assim que se chega aos enunciados supostamene fascistas e aos reproches conhecidos.
O Céline cidadão como o Céline romancista não é exatamente um fascista, as coisas são muito mais complicadas que isso, e vale a pena frisá-lo quando se lança entre nós, no ano do centenário de nascimento, o livro de estréia, publicado em 1932, de acordo com o escritor para fazer dinheiro. "Voyage ao Bout de la Nuit", que lhe rende de fato dividendos, muito úteis quando estiver fugindo da Liberação, com a casa de Montmartre saqueada e a cabeça a prêmio, será traduzido em toda parte, e recepcionado como explêndido diagnóstico do mal-estar dos tempos.
Se público e críticos, entre eles Sartre, mudam de idéia na sequência, é que dentre todas as abjeções já contidas em "Voyage", para quem quisesse ver, só se vê agora a invenctiva anti-semita, e se reduz a grande visada niilista, originária de um radical pessimismo de saída, que não poupa nem judeus nem brancos nem negros nem amarelos, mas abarca o planeta todo, "podridão em suspenso", segundo a definição celiniana do homem.
Definição que não convém nem um pouco à esquerda e ao bom sentido da história, eis porque o pós-guerra execra o escritor, e a revista "Les Temps Modernes" de Sartre, que ele chamou um dia "o asno de óculos", se inaugura em 1945 com um artigo em que é especialmente visado.
Médico de periferia (até o fim) e, segundo uma de suas arengas maníacas, bem mais interessado nos adiantamentos da Gallimard do que no futuro das letras, o Dr. Destouches está em excelente posição para apreciar através da doença o sentido natural de tudo, que é a decomposição. "Nossa vida é uma viagem", traz em epígrafe o romance de estréia.
A palavra viagem, significante forte em Céline, não tem outra acepção que não a de caminho para a morte. A desmesura hiperbólica apenas agrava, a partir de "Morte a Crédito" (tradução brasileira da Nova Fronteira), essa sombria visão, na base do achincalhe de tudo e de todos.
É isso o que realmente conta. Mas fora isso, talvez fosse bom sublinhar. Em nome dos bons sentimentos, que não há em Céline passagem ao ato nenhuma: toda a sua ofensa ao judeu é por escrito. O surto persecutório, embora envolva a mais grave questão ética deste século, não extrapola a obsessão do estilo e a folha de papel, quer dizer: o tormento interior.

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