São Paulo, segunda-feira, 5 de dezembro de 1994
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Médico não sabe dar notícia de Aids

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

O técnico em informática Silvio, 31, estranhou quando toda uma comitiva da empresa em que trabalhava chegou para visitá-lo. Afinal, ele tinha tido apenas uma diarréia forte, já controlada.
Estavam o médico da empresa, o gerente do departamento pessoal e a enfermeira. Antes passaram na casa do sogro de Silvio e o trouxeram como testemunha.
Motivo da visita: anunciar que o funcionário estava com Aids e que teria 60 dias de vida. "Agiram como se estivessem na Idade da Pedra", disse Silvio, que semanas depois foi demitido.
O episódio, comum no início da epidemia, ocorreu em maio passado em São Paulo. Doze anos depois da chegada da Aids, muitos médicos ainda revelam um resultado positivo como se fosse o fim do mundo. Outros o anunciam como um exame qualquer.
"Muitos portadores chegam aqui traumatizados", diz José Araujo, diretor do Grupo de Incentivo à Vida (GIV). Toda segunda-feira, Araujo recebe cerca de dez novas pessoas que acabaram de saber que estão com o HIV.
"Os que sofreram um trauma na entrega do resultado demoram meses e anos para se abrir. Eles perdem a confiança no profissional."
Caio Rosenthal, infectologista dos hospitais Emílio Ribas e Albert Einstein, diz que "há médicos que não sabem sequer interpretar o resultado de um exame de HIV".
"Outros pedem o teste sem necessidade. E outros simplesmente informam o resultado, deixando o paciente em pânico", afirma.
Pelo menos em alguns serviços públicos, os profissionais já estão lidando melhor com o momento dramático do anúncio da Aids.
A Folha pediu a sete membros do GIV portadores do HIV que repetissem os testes em diferentes locais. Dois deles, o psicólogo Valter Gallego e a professora universitária Iara, utilizaram laboratórios particulares e receberam o envelope fechado dois dias depois.
O vendedor Marco Tabacow, 27, e o desenhista Marco Antonio, 38, procuraram postos de saúde em São Paulo. Em 45 dias, não conseguiram sequer fazer os testes.
Em Lins (453 km a noroeste de SP), o funcionário público D.M.S. repetiu o teste no posto de saúde local. Um mês e meio depois não tinha recebido o resultado.
Em Marília (443 km a noroeste de SP), o supervisor de serviços gerais Antonio Carlos recebeu o resultado em 15 dias.
Em São Paulo, José Araújo fez o exame no posto de saúde do bairro Santa Cecília. Disse que esperou 40 dias pelo resultado e encontrou o envelope aberto, mas ressalva que o tratamento foi muito melhor que há oito anos, quando ficou sabendo que tinha o HIV.
"A demora no resultado aumenta muito a ansiedade do paciente", diz Grace Suleiman, supervisora do ambulatório do Emílio Ribas. Grace já deu a notícia da Aids para mais de mil pessoas.
"Mesmo quem já espera pelo resultado positivo vive um momento dramático. As mulheres são as que mais sofrem. Muitas só fizeram o teste depois de descobrir que o marido estava infectado."
Por causa do choque da notícia, os médicos sugerem que as pessoas só façam o teste depois de orientados. Abrir o envelope sem a presença de um médico pode ser perigoso.
José Araujo considera "um crime" o fato de os laboratórios entregarem o envelope do HIV diretamente ao paciente.
Flávio Badin Marques, do Conselho Regional de Medicina, diz que o "resultado pertence ao paciente". "Mas o ideal é que o pedido parta de um médico e que a interpretação seja feita por ele."

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