São Paulo, terça-feira, 6 de dezembro de 1994
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Renda mínima garantida ou os perigos da inocência

ROBERTO CAMPOS

A idéia da renda mínima garantida ostenta o mais impecável pedigree liberal. Ou até, para sermos mais exatos, "neoliberal", já que foi particular e brilhantemente desenvolvida pelo notável economista –monetarista radical!– Milton Friedman. Sua concepção básica é, a um só tempo, simples e original: a cada pessoa, e independentemente do julgamento do mérito de cada caso por algum burocrata, seria garantido um mínimo de renda, descontando-se parcialmente os rendimentos adicionais que cada qual pudesse obter (a título de salários ou outros).
Só que essa admirável noção liberal seria como aquela história da mulher que consultou o ginecologista sobre como evitar filhos e ouviu a receita: um copo de suco de laranja. "Antes ou depois, doutor?", perguntou, ansiosa. "Em vez de", respondeu o médico.
A renda mínima garantida substituiria a multiplicidade doentia dos programas sociais, burocratizados, mal geridos e, frequentemente, covis de corrupção, que não raro gastam mais com o seu próprio pessoal do que com os supostos beneficiários finais.
Não seria nada mau simplificarmos o emaranhado cipoal dos programas ditos "sociais", no Brasil, geralmente por uma dessas nossas fantasiosas forças de expressão oficiais bem malandro-tropicalista. Se aplicado corretamente, de acordo com sua concepção teórica, o sistema da renda mínima garantida não só aumentaria a renda individual ou familiar, como também incentivaria a flexibilidade e a motivação da força de trabalho.
A idéia é que o indivíduo faça livremente as suas escolhas, sem ter de ser levado pela mão por alguma babá governamental, com tudo o que isso tem de aviltante e ineficiente. Bom para todos, empregados, empregadores, o conjunto da sociedade.
A renda mínima garantida não excluiria necessariamente, aliás, alguma assistência adicional em certos tipos de bens ou serviços de natureza pública ou coletiva, relativos à educação e à saúde. Não é razoável deixar exclusivamente por conta do indivíduo (chefe da família) decisões que eventualmente podem afetar outros.
Mas agora entra o "pequeno detalhe". O que parece andar na cabeça de algumas pessoas é uma espécie de contribuição adicional, por cima de tudo o que já existe, e sem redução real das intermináveis complicações do sistema ora em vigor. A situação atual é é de absoluta loucura. O empregado recebe menos da metade do que o empregador paga na folha de trabalho, gerando o terrível paradoxo: somos um país de baixos salários e alto custo efetivo de mão-de-obra.
Será preciso dizer alguma coisa sobre o famoso INSS? E as falcatruas e fraudes em todos os níveis, por esse país a fora? Na previdência rural, são um espanto. Na saúde, idem. E assim por diante... Neste país que não conseguiu, até agora, sequer assegurar um mínimo de ordem no FGTS, quem administraria a renda mínima? E de onde, afinal, viriam os rios de dinheiro que custaria a coisa?
Uma fórmula intermediária, prévia à adoção do esquema de renda mínima, poderia ser a opção previdenciária privada. Os indivíduos, em qualquer nível de renda, poderiam dispensar-se de contribuições à previdência pública, se comprovassem sua inscrição em fundos privados de pensão e aposentadoria. Estes seriam geridos por entidades especializadas sujeitas à fiscalização do governo, o qual poderia cobrar uma taxa de seguro, para a hipótese de ter de intervir em entidades eventualmente inadimplentes, visando a reembolsar o capital aplicado pelo trabalhador.
Os fundos de pensão e aposentadoria não seriam apenas uma provisão para encargos futuros e sim uma massa de recursos que serviriam para alavancagem do desenvolvimento comercial e industrial. A função do governo, além da fiscalização do sistema, seria garantir uma renda mínima a todos aqueles que ao fim de sua vida laboral não obtenham no mercado rendimento capaz de lhes proporcionar um mínimo vital. É uma inversão completa da atual filosofia. A previdência básica seria responsabilidade do indivíduo. Ao Estado caberia a plena contemplação da renda dos mais pobres.
Como liberal firme na sela há mais de 40 anos, fico feliz em ver que idéias liberais começam a penetrar onde menos seria de esperar. Estas últimas eleições mostraram inequivocamente que o país –e, o que ainda é mais significativo, o "povão", em massa, quer, antes de tudo, mais ordem e estabilidade. O Brasil é, sob muitos aspectos, uma sociedade doente, que tem de passar por uma boa convalescença antes de se propor grandes planos.
Sejamos justos com o governo eleito, que só daqui a um mês estará efetivamente em ação. O país não dispõe de estrutura administrativa nem sequer para ir tratando dos problemas mais sérios já identificados. A própria equação política ainda não está definida no Congresso. Iniciativas como a que aqui referimos só devem ser consideradas depois que a economia atinja equilíbrio monetário e um horizonte de estabilidade e previsibilidade de que o Plano Real foi apenas um prenúncio.
Com poucos objetivos, claramente formulados, o novo governo terá reais chances de recolocar o país no bom caminho. E, aliás, deve reconhecer-se que Fernando Henrique tem sido sóbrio e razoável, o que vem exercendo um papel suavizante favorável sobre as expectativas dos agentes econômicos. Mas ainda há muita coisa a fazer –digo-o com certa pena, mas convicto– antes de que se possa cogitar de pôr em prática algumas idéias liberais demasiado refinadas para as condições concretas.

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