São Paulo, terça-feira, 6 de dezembro de 1994
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'1.001 Noites' expõe talento de Pauline Kael

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Pauline Kael –autora de "1.001 Noites no Cinema"– forma com James Agee, Andrew Sarris e Manny Farber uma espécie de quadra de ases da crítica de cinema nos Estados Unidos. De todos, talvez esteja mais próxima de James Agee, que se definiu como um crítico amador.
O amadorismo é que dá o tom às 1.001 resenhas deste livro que está sendo lançado no Brasil (na verdade, uma seleção feita pelo jornalista Sergio Augusto, da Folha, dos 2.848 filmes analisados no original, "5.001 Noites no Cinema").
Boa parte delas, a mais interessante, parece muito com essas anotações rabiscadas por cinéfilos no guardanapo do bar, assim que saem do cinema. É uma escrita tumultuada, em que se misturam impressões às vezes irrefletidas, cujo encanto vem da própria fugacidade.
É desse tumulto que vem o frescor dessas "1.001 Noites": são observações tomadas ao vivo, ou que fingem ser assim, ao longo de 30 anos, sem prestar satisfação a ninguém. Vejamos como Kael –hoje com 75 anos, retirada há três anos– abre o verbete a "Nascido em 4 de Julho": "Épico antiguerra, parece uma dessas edições ilustradas da revista 'Life'. Cobre de 1956 a 1976 e mostra a contracultura de uma forma nostálgica e esteticamente reacionária."
São verdades parciais, como esta, que compõem o livro. Parciais em dois sentidos: 1) a autora não pretende dar conta do todo de cada filme, nem escrever propriamente microensaios; 2) ela coloca seu ponto de vista à frente do filme e toca o barco.
Um ótimo resumo do estilo desta crítica que durante 30 anos pontificou na revista "The New Yorker" está em uma resenha de Richard Corliss na revista "Time": "Kael não ensinava a ver filmes –considerações descritivas sobre o estilo visual dos diretores não eram o seu forte–, mas com certeza ensinava o que sentir sobre eles."
Essa fragilidade no aspecto formal, que a leva a uma captação antes de tudo literária do cinema, não impede de captar o filme em sua evidência, como quando escreve sobre "Nicholas e Alexandra" (1971), por exemplo: "Tão servilmente respeitoso quanto se enfocasse monarcas vivos que pudessem recompensar o produtor com uma encomenda." Como se sabe, o filme trata do destino de Nicolau 2º da Rússia, após a revolução bolchevique.
Em outras ocasiões, porém, Pauline Kael impressiona pela maneira como resume em uma frase as fraquezas de um embuste laborioso, como "Olhos Negros", de Nikita Mikhalkov (1987): "Mostra obviedade e tolice –ambas em quantidades sem precedentes. Tudo no filme é exagerado, vagaroso e próximo demais." É algo que apenas se pressente vendo "Olhos Negros" e que se mostra a nós com clareza, ao ler a autora.
As virtudes de seu estilo são também seus limites. Por vezes, Kael aplastra sob a mesma ótica –a sua– filmes que escapam a ela.
Em diversas ocasiões faz referência à pouca emotividade dos filmes do francês Robert Bresson, como se essa característica fosse obrigatoriamente um defeito, e não algo procurado.
Ao não fazer qualquer concessão ao objeto de sua observação, ao optar por um subjetivismo radical, Pauline Kael por vezes deixa o seu leitor à deriva. Para ela, o "Ginger e Fred" de Fellini (1986) apenas "serve de pretexto para desabafar sua antipatia pela TV. Ele faz paródias de programas e comerciais de televisão como se fossem imagens obscenas, e pretende que sejam obscenas. Mas Fellini não tem prazer em energizar esses 'sketches', tampouco o resto do material. É um filme emperrado, trôpego."
Nessas horas, Kael se infiltra pelo território que tantas vezes denuncia –o da banalidade– e volta do cinema com muito pouco. Estar ou não contra a TV é um aspecto tão secundário neste filme que o leitor mal consegue acompanhar o raciocínio da autora.
Essas desigualdades são previsíveis ao longo de 1.001 verbetes. Mesmo se não concordarmos com a importância que Kael atribui a certos conceitos (como o de emoção), seus comentários têm a virtude de quase sempre oferecer ao leitor um diálogo instigante com suas próprias idéias sobre os filmes e o cinema em geral.
Por seu próprio apego à subjetividade, "1.001 Noites no Cinema" tem a virtude –periférica, embora não secundária– de mostrar que a crítica não é uma espécie de ordem unida, mas um material que se oferece à reflexão e ao prazer. O inverso da ordem unida.
Livro: "1.001 Noites no Cinema"
Autora: Pauline Kael; seleção de textos e apresentação de Sergio Augusto
Preço: R$ 28,50
Páginas: 568
Quando: à venda a partir do dia 9 de dezembro

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