São Paulo, quinta-feira, 8 de dezembro de 1994
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O suicídio da indústria brasileira

ROGÉRIO CÉZAR DE CERQUEIRA LEITE

Uma das lendas mais fascinantes que se repete em culturas distintas aparentemente isoladas é a do suicídio do escorpião. O caboclo brasileiro, o maori neozelandês, o tadjique afegane e o "snob" autor inglês Ian Flemming, supostamente bem-informados, todos descrevem a mesma irretocável cena.
Colocado no interior de um círculo de brasas o araneídeo tenta escapar. Desesperado, agride com o ferrão envenenado que está na extremidade da longa cauda o próprio corpo e morre estrebuchando como um médium pentecostal.
De fato, escorpiões são muito sensíveis ao calor, desidratam facilmente. Ao se aproximar sucessivamente da brasa, entram em colapso. Suas contorsões são tomadas por tentativas de auto-envenenamento. E o escorpião morre queimado e não se suicida.
Maior equívoco é frequente com a interpretação de certos surtos extemporâneos de migração de diferentes mamíferos que foram e ainda são ocasionalmente interpretados como suicídios em massa. É o caso de várias espécies de lemingues das regiões árticas, do antílope seiga, da lebre australiana e tantos outros que, intermitentemente, em grandes números se lançam contra obstáculos intransponíveis.
O bem estudado caso de lemingue norueguês ("lemmus lemmus") é ilustrativo. A estratégia de sobrevivência básica das várias espécies de lemingues em geral é cristã. "Crescei e multiplicai-vos." Esse diminuto roedor, após uma gravidez de 22 dias e um período de crescimento de mais três semanas, está pronto para uma segunda geração. As ninhadas são pequenas –três ou quatro, às vezes um pouco mais–, mas o efeito multiplicativo é enorme. Assim uma colônia que começa com algumas centenas de indivíduos na primavera, no verão já terá milhares. A superpopulação desencadeia um mecanismo de histeria coletiva de natureza filogenética (instintiva). A compulsão os leva, por vezes, a despencar aos borbotões dos fiordes sobre o gélido Mar Ártico.
A visão tétrica da mortandade aparentemente inútil do loquaz e valente animalzinho gerou a crença em um suicídio em massa, à maneira dessas seitas perversas que brotam na Califórnia e em Brasília. Todavia, esse frenético comportamento é fundamental para a sobrevivência da espécie. Se essa migração desenfreada não ocorresse, a superpopulação arrasaria as fontes naturais de alimento e a colônia viria a sucumbir. Não há suicídio coletivo.
Assim, concluem os especialistas, somente este animal que se denomina "homo sapiens" apresenta essas formas de comportamento, o suicídio individual e o coletivo. E, esta última, somente como consequência de formas degradadas de fanatismo religioso. Pelo menos é o que se pensava até recentemente, pois eis que uma revelação inesperada, absolutamente paradoxal, aflora na nação brasileira.
A burocracia fazendária libera de impostos a importação pelo correio de itens até US$ 100, e taxa com apenas 10% itens até US$ 500. Tomemos como exemplo a já agonizante indústria eletrônica brasileira que paga de 10% a 15% de IPI e 18% de ICMS. Além do mais, o empresário brasileiro opera com juros de 6% ao mês, enquanto o norte-americano opera com menos de 1% e o japonês com 0,4%.
As decantadas vantagens de mão-de-obra mais barata já não são significativas, pois com os atuais níveis de automação, seja nos EUA, seja no Brasil, seja no Japão, não passa de 10% na parcela da planilha de custos atribuída à mão-de-obra. Aliás, com os elevados impostos sociais brasileiros é possível que mesmo no item mão-de-obra já estejamos em desvantagem.
É, portanto, impossível para nossa indústria competir com a externa se esta última for dispensada de ICMS e IPI, como é o caso da importação pelo correio.
Poder-se-ia pensar que dificuldades físicas naturais limitariam as importações. Entretanto essa presunção não parece ser verdadeira, pois um único item, rádio-cassete para automóveis, em uma única empresa que faz a intermediação teve na primeira semana 3.000 encomendas. Se há demanda reprimida, também há ignorância sobre os mecanismos e a confiabilidade desse mercado.
Se a importação continuar nesse patamar, haverá falência dessa indústria, desemprego e perda de impostos. Pois bem, não é apenas esse item, são centenas, milhares de produtos. Centenas, milhares de indústrias, milhões de empregos, bilhões em impostos, se de fato, como anuncia gloriosa e vitoriosamente a Rede Globo, são 20 mil pacotes por dia que chegam nos correios.
Pois bem, admitindo que o nível de importações pelo correio continue aí e o valor médio do pacote fique em US$ 200, a perda de empregos será de 300 mil e de ICMS + IPI de US$ 0,5 bilhão. Centenas de indústrias irão à falência. A equipe econômica acaba portanto de inventar o suicídio coletivo industrial.
Pois bem, é prática corrente nos países industrializados, mesmo nestes dias de neoliberalismo desvairado, a proteção da própria indústria. Para aprovar o novo tratado de comércio exterior, por exemplo, o Parlamento dos dos EUA exigiu que o Executivo garantisse que não haverá perdas para a indústria norte-americana, incluindo na legislação mecanismo que permite rompimento imediato caso venha a ocorrer prejuízo para a indústria daquele país.
Somente o Brasil, espontaneamente, sem nenhuma reciprocidade, encontrou uma fórmula de protecionismo invertido. Como um país generoso e rico, estará criando emprego e apoiando o desenvolvimento de países necessitados como o Japão e os Estados Unidos da América. Essa equipe econômica merece um prêmio. Senão pela inteligência, pelo menos pela originalidade.

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