São Paulo, sexta-feira, 9 de dezembro de 1994
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Cúpula das Américas e biodiversidade global

RUSSEL MITTERMEIER; GUSTAVO FONSECA

RUSSEL MITTERMEIER; GUSTAVO FONSECA
A Cúpula das Américas, que deverá ter lugar em dezembro em Miami, pode representar um ponto de partida no enfrentamento de uma das questões econômicas e geopolíticas mais importantes do século que se avizinha: a biodiversidade global.
O nosso trabalho como pesquisadores e ecólogos, associado à atuação como conservacionistas, fez com que durante a última década estivéssemos presentes constantemente em reuniões de tomada de decisões por parte de agências de fomento internacionais, como o Banco Mundial.
Por outro lado, dedicamos grande parte do nosso tempo a pesquisas de campo em ecossistemas tropicais.
A nossa experiência nos gabinetes climatizados dos Estados Unidos e nas florestas tropicais e outros ambientes naturais da América do Sul e do Brasil indica um completo descompasso entre política e ação.
Apesar das centenas de reuniões, não temos testemunhado a chegada destes recursos às organizações, comunidades e indivíduos que realmente desempenham as atividades de conservação em nível do campo.
A Cúpula das Américas, que congregará os líderes políticos de todo o continente, apresenta-se como uma grande oportunidade para tratar seriamente da biodiversidade do hemisfério ocidental. Pode também servir como o primeiro fórum que reconheça a estreita ligação entre os recursos biológicos e o comércio internacional.
O fato de que o futuro da agricultura, da saúde humana e do progresso industrial em nível global em última instância depende da manutenção da biodiversidade do planeta está finalmente sendo reconhecido internacionalmente.
No entanto, estamos muito longe de fazer com que a conservação da biodiversidade se torne uma realidade na vasta maioria das regiões sob ameaça, muito mais ainda em compreender o seu papel para a geopolítica mundial.
A reunião de Miami pode fixar a mensagem de que existe uma grande "vantagem competitiva" por parte da região neotropical (trópicos da América Latina e Caribe), emanando da biodiversidade contida em seus ecossistemas naturais.
A região ocupa apenas 16% da superfície terrestre de todo o planeta, abrigando somente 8% da população mundial. Não obstante, contém altíssimos percentuais da biodiversidade global: aproximadamente 37% de todos os répteis, 47% dos anfíbios, 27% dos mamíferos, 43% dos pássaros e 34% das plantas.
O Brasil é especialmente rico: perto de 1/4 de todas as formas de vida encontra-se dentro de seus limites territoriais.
Cerca de 57% de todas as florestas tropicais, ambientes mais diversos em formas de vida em todo o mundo, estão representados na região Neotropical. O Brasil contém 36% do total global. Esta concentração de recursos naturais certamente representa uma vantagem competitiva em nível mundial.
Um outro indicador é a biomassa florestal per capita, florestas historicamente fornecendo matérias-primas de grande valor para o mercado internacional.
A região da Ásia e do Pacífico possui 36 toneladas de biomassa florestal para cada habitante; a África possui 145 toneladas per capita. Em contraste, na região neotropical ainda existem, em média, 426 toneladas.
Alguns países, em particular, são responsáveis pela média elevada: Brasil, com 705 toneladas, Bolívia, com 1.009, Guiana, com 4.396, e o Suriname com o número fantástico de 9.496 toneladas por habitante.
Estas "bioriquezas", facilmente traduzíveis em cifras monetárias, serão de vital importância para o crescimento econômico e para a estabilidade geopolítica, já que muitas partes do mundo estão explorando os seus próprios recursos de modo predatório e não-renovável, além de procurarem posicionar-se rapidamente para obter acesso aos abundantes recursos naturais da região Neotropical.
Só para citar poucos exemplos, companhias madeireiras coreanas já se estabeleceram na Guiana e companhias da Malásia esperam ansiosamente a obtenção de concessões de exploração florestal neste mesmo país. Madeireiras da Indonésia e da Malásia estão realizando gestões no mesmo sentido no Suriname, assim como outras oriundas da China.
A atividade madeireira na Amazônia brasileira é é conhecida, sendo as espécies mais nobres direcionadas principalmente ao Japão e Europa ocidental. O retorno econômico destas atividades para os países detentores dos recursos tem sido insignificante, sendo que pouquíssimo valor está sendo agregado a estes produtos.
Em realidade, é improvável que o ritmo de crescimento das economias asiáticas e daquelas do mundo desenvolvido possa ser sustentado sem os grandes subsídios proporcionados pelos países neotropicais, que detêm a vasta maioria dos recursos biológicos.
Deve a região neotropical proporcionar estes subsídios, representados por preços insignificantes pagos pela sua biodiversidade, deste modo decretando o fim de suas próprias oportunidades de desenvolvimento? Ou será que existe a possibilidade de rapidamente capacitar-se a utilizar sustentavelmente estes mesmos recursos em benefício próprio?
As agências de fomento internacionais podem desempenhar um papel relevante, direcionando recursos financeiros à região neotropical para financiar o desenvolvimento dos modelos de uso sustentado da biodiversidade, que em última análise beneficiarão tanto os países biologicamente ricos quanto o equilíbrio ecossistêmico global.
Só existe uma certeza: como qualquer commodity em progressiva escassez no mercado mundial, as reservas existentes se valorizarão fantasticamente com o tempo. Com base no estado da arte atual deste ramo, ousamos avançar a tese de que, com densidade populacional relativamente baixa e com alta concentração de recursos biológicos, a região neotropical é a única que ainda oferece condições de viabilizar o tão propalado desenvolvimento sustentável.
A questão central é que o acesso (ou não acesso) aos recursos dos países biologicamente ricos por aqueles biologicamente pobres é talvez um dos temas geopolíticos mais cruciais dos próximos anos. A Cúpula das Américas apresenta-se como uma grande oportunidade para iniciarmos este processo.

RUSSEL MITTERMEIER, ecólogo e especialista em primatas, é presidente da organização Conservation International, dedicada à conservação de biodiversidade, com atuação em 23 países.

GUSTAVO FONSECA, zoólogo, é professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e vice-presidente da Conservation International do Brasil

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