São Paulo, sexta-feira, 9 de dezembro de 1994
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Cenas de um Brasil embalado pela paixão

ROBERTO DRUMMOND
ESPECIAL PARA A FOLHA

Paixão s.f.1. Sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade. 2. Amor ardente.
(Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Hollanda).
Pois é, meus irmãos e minhas irmãs, o Brasil está vivendo no embalo da paixão.
Cena 1: no palácio encantado de Brasília, Sua Excelência, o presidente da República, incendiado por um fogo que arde sem doer, de que falava Camões, muda o visual. Adota um novo modelo de óculos, mais jovem e mais charmoso, e também um novo penteado, em que o célebre topete, que faz a delícia dos cartunistas, está agora mais comportado, menos entregue à ação do vento e das intempéries. Como se falasse a língua dos anjos, sugerida por São Paulo (e a Bíblia passou a ser o livro de cabeceira de Sua Excelência), o presidente está aberto a todas as reivindicações.
Alô, Vicentinho: diga à CUT e aos trabalhadores do Brasil, que, tomado de paixão por uma jovem das Minas Gerais, Sua Excelência quer dar um salário mínimo não de parcos US$ 100,00, mas de R$ 250,00, pense o que pensar a equipe econômica, que o amor não quer ver ninguém triste nem de bolso vazio.
Cena 2: nos tempos encantados do futebol, no calor das semifinais do Campeonato Brasileiro, a paixão assume o poder e revoga as disposições em contrário. Lá estão os "Gaviões da Fiel" esperando que o São Corinthians, Coringão para os íntimos, faça o único milagre que eles querem: ver o timão campeão do Brasil, amém. Os devotos da "Galoucura" não esperam menos: querem a faixa para o Atlético do jovem rei Reinaldo. Os "Guerreiros da Tribo" gritam: Guarani campeão! Guarani campeão! A "Mancha Verde" palmeirense responde à altura: Verdão! Verdão!
Ah, Vicentinho, diga à CUT que, enquanto durar a esperança passionária do Corinthians e do Atlético, do Guarani e do Palmeiras, é inútil convocar seus adeptos para qualquer reivindicação ou greve.
Aí é que está a diferença entre as duas paixões.
A paixão de Sua Excelência é magnânima: quer abraçar o mundo e atender, principalmente, às populações mais sofridas e carentes do Brasil.
A paixão da Fiel, da Galoucura, da Mancha Verde e dos Guerreiros da Tribo abre mão do mundo em troca do título de campeão.
Se fosse rezar, Sua Excelência rezaria assim:
"Senhor, fazei com que este fogo que arde no meu peito, este incêndio, ilumine o Natal e o Ano Novo dos simples e dos puros de coração do meu país."
Se fosse rezar, a torcida do Coringão, do Galo, do Verdão e do Guerreiro da Tribo, rezaria assim:
"Senhor, corte meu pão, mingue meu salário, volte, se for preciso, com o dragão da inflação, mas faça de meu time o campeão."

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