São Paulo, sábado, 10 de dezembro de 1994
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Contos de Dalton Trevisan mordem o leitor

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

O novo livro de Dalton Trevisan, "Dinorá", nos faz pensar, mais ainda que os outros, em algum ourives absorvido em fazer, com seu ouro e suas pedras, minúsculos bichos, reais ou imaginários, que vamos examinando um a um, na palma da mão. Mas cuidado com eles. Eles mordem.
Eu anotei essa impressão de mordida ao ler em "Dinorá" o seguinte contozinho: "O marido, ao telefone: 'Quando você vier para casa, não deixe a menina entrar no quarto –eu estou enforcado"'.
Nisto leio um texto do Ivan Lessa, que mencionava o livro anterior de Dalton, "Ah, É?", e observava: "...eu leio Dalton sozinho em voz alta; o estilo é tão afiado que eu tenho medo de me cortar; se me ferir, alguém voa com o band-aid".
Por tudo isso, pelas mordidas e cortes, é que há uns 30 anos Helio Pellegrino chamou Dalton Trevisan de vampiro de Curitiba e o apelido foi aceito por todos, inclusive pelo apelidado. "Dinorá", sem deixar de morder ou picar, embrenha-se também por uma espécie de jornalismo polêmico. Um desses artigos polêmicos chama-se "Capitu sem Enigma" e me deu a curiosa impressão de que eu já o havia lido.
Dalton começa firme, rodando a baiana, furioso como aqueles que querem roubar a Capitu o que ela tem de inebriante, capitoso, a infidelidade:
"Até você, cara –o enigma de Capitu? Essa, não: Capitu inocente? Começa que enigma não há: o livro, de 1900, foi publicado em vida do autor –e até sua morte, oito anos depois, um único leitor ou crítico negou o adultério? Leia o resumo do romance, por Graça Aranha, na famosa carta ao mesmo Machado: 'Casada, teve por amante o maior amigo do marido' –incorreto o juízo, não protestaria o criador de Capitu, gaguinho e tudo? Veja o artigo de Medeiros e Albuquerque –e toda a crítica por sessenta anos. (...) Agora quer o flagrante dos amásios? Lá está, no capítulo 'Embargos de Terceiro': a esposa alega indisposição, o marido vai ao teatro, volta de repente, surpreende o amigo que inventa falso pretexto. Em 'Dez Libras Esterlinas', Capitu revela os escondidos encontros com Escobar. (...) Quer mais, ó cara: a prova cabal do crime? A Bentinho, que era 'estéril', nasce-lhe um filho temporão –nenhum outro, um só e único". Que era, por sinal, a cara do amigo, Escobar.
Aqui está o Otto: "Quem fica tiririca, e com toda razão, com essa história mal contada, e tão mal contada que desmente o próprio Machado, é o Dalton Trevisan". E Otto, encarniçado contra a pretensa e desenxabida fidelidade de Capitu, troveja: "De onde os senhores professores tiraram esse despropósito e o passam aos imberbes e indefesos vestibulandos? 'Dom Casmurro' saiu em 1900. Machado morreu em 1908. Nenhum crítico nesses oito anos jamais ousou negar o adultério de Capitu. Leiam a carta do Graça Aranha, amigo pessoal do Machado. (...) Dar o Bentinho como o 'nosso Otelo' é pura fantasia. Bestialógico mesmo. (...) Refinadíssimo escritor, mestre do subentendido, do 'understatement', Machado jamais desabaria numa grosseira cena de alcova. Mas, se querem, o flagrante está no capítulo 113, 'Embargos de Terceiros'. No anterior capítulo 106, 'Dez Libras Esterlinas', Capitu revela os escondidos encontros com Escobar".
O que se conclui da leitura desses dois textos gêmeos, o da Folha e o de "Dinorá", é que Otto e Dalton haviam discutido e esmiuçado o "Dom Casmurro", em mais de uma das incontáveis conversas que tiveram um com o outro. Eram amigos como os que mais o fossem. Dalton Trevisan mais de uma vez viajou de Curitiba ao Rio para matar saudades do Otto, do fascinante papo do Otto.
Quando Otto e eu trabalhávamos juntos no "Jornal do Brasil", mais de uma vez, ao sairmos da sala dos editoriais para retornarmos ao nosso pouso e nossas máquinas datilográficas, encontramos a figura clara de Dalton à espera, aquele ar enrustido de gringo fino. Era sempre amabilíssimo comigo, ou com quem mais estivesse presente, mas seu alvo e objetivo era ver o Otto, falar com o Otto. De preferência a sós.
Tal como a insônia parece ser hoje, essa era, naqueles tempos, uma das dificuldades vitais de Dalton: pegar sozinho o Otto gregário e perdulário do seu tempo. Muita gente assanhada e traquejada perdia às vezes a esperança de segurar o Otto num canto. Discreto, obstinado, Dalton Trevisan se limitava a esperar e esperar, como o herói de Kafka diante das portas fechadas do castelo. Às vezes, o Otto, malicioso, fazia conosco algum comentário "sotto voce" sobre o curitibano que viajava para vê-lo como quem viaja em busca de médico.
A verdade, porém, é que sempre acabavam almoçando ou jantando juntos, ou se recolhendo à casa do Otto. Para alegria de ambos. Eram amicíssimos e profundos admiradores um do outro. Otto foi descobridor e permanente admirador da literatura de Dalton e Dalton só fazia ao amigo uma crítica: a de que ele custasse tanto a dar como prontos os livros em que vivia empenhado.
E viva Capitu, que a todos fascina, de Graça Aranha e Medeiros e Albuquerque a Dalton Trevisan e Otto Lara Resende. A todos nós. Respeitemos um dos dogmas da nossa literatura, que é o da maculada conceição do filho de Capitu com Escobar. Cultuemos a sua infidelidade e não afastemos de nós a negra inveja que sentimos de Escobar.

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