São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 1994
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PASSARELLA

GABRIEL GONZALEZ; MIGUEL ANGEL BERTOLOTTO
DO "CLARÍN"

Toda noite, antes de dormir, tinha que pegar água na bomba do quintal. Toda manhã, na hora de se lavar, o orvalho congelava os canos e não havia nada a fazer. Na cozinha, dona Elida tentava derrotar o redemoinho do cabelo negro de "Mocho", seu filho franzino. Assim era a infância em Chacabuco (200 km a leste de Buenos Aires). Duro. Difícil.
Trinta anos depois, aquele menino, já com 41, acaba de estacionar seu BMW na Recoleta (bairro chique da capital argentina).
Impecável em seu traje cinza, do qual desprende uma fragrância cara (depois revelou que Givenchy era seu preferido), senta em uma das mesas do "Champs Elysées" –confeitaria e restaurante do qual é um dos donos– e pede café.
Ao arregaçar a manga da camisa de seda, mostra um relógio dourado e no dedo anular uma aliança de ouro e platina trançados.
No outro pulso, uma pulseira de ouro e uma fita laranja das baianas de Nossa Senhora do Bonfim, a ponto de romper-se, esperando que se cumpra um desejo.
Um moço com cabelo bem curto –afinal é seu empregado–, traz o café e é a ocasião do primeiro cigarro do dia. Ninguém chama mais Daniel Alberto Passarela de "el Mocho".
Alguns o chamam de Kaiser, porque no River Plate impôs sua forma de pensar. A lista dos que tiveram que sair do clube é enorme. E, embora diga não guardar rancores, dificilmente algum deles será convocado para a seleção argentina, agora sob seu comando.

Pergunta - Você ganhou muitos inimigos no futebol...
Daniel Passarella - São pessoas que não concordam comigo. Reconheço que sou muito exigente com os jogadores, mas estou seguro de que, quando tiverem 40 anos, vão me agradecer.
Pergunta - Eles temem você?
Passarella - Não. Creio que me respeitam. E isso é mútuo.
Não é fácil para Passarella admitir erros. Parece frio, decidido, às vezes autoritário, mas com a atitude de quem está convencido da própria razão. Perder Gabriel Batistuta foi um erro. Um goleador que, depois do River, triunfou no Boca e na Itália. Mas, se o atacante pretende voltar à seleção, terá que cortar o cabelo. Passarella sabe que foi por impor sua disciplina que chegou ao posto mais difícil e polêmico do futebol argentino. Para ele não há estrelas, mas sim trabalho. Duro. Difícil.
Pergunta - Você gosta de roupas caras, de carros europeus...
Passarella - Se me visto com um traje italiano, não é para me exibir. Ganhei dinheiro e seria besteira não aproveitá-lo. E é certo que as "máquinas" são minha paixão, em especial as alemãs.
Pergunta - Um motivo a mais para o apelido de Kaiser.
Passarella - É que tenho fama de duro, mas não é assim. Se não acreditam, perguntem à minha mulher.
Mas na hora de brigar, Passarella confirma a fama. Sua relação com Maradona é um exemplo. Não se falam desde o Mundial de 1986. E, quatro anos depois, no México, apenas se insultaram.
A origem pode ter sido a disputa pela braçadeira de capitão. Conta-se que Passarella entrou no apartamento de Maradona furioso pela indisciplina do grupo: "Chega de brincadeira! Eu vim ganhar a Copa!", gritou. O sangue não chegou a correr, porque uma úlcera de estômago o tirou do torneio. Maradona espalhou, sem titubear, que Passarela "se borrou".
Pergunta - Por que você não responde às acusações de Maradona?
Passarella - Porque nunca dou ouvidos. Aqueles que me conhecem bem não precisam de explicações. Há seis anos que não falo de Maradona, nem lhe respondo. E será sempre assim.
Pergunta - Não foi um erro ter tornado pública a obrigação da rinoscopia para detectar o uso de cocaína pelos jogadores?
Passarella - A rinoscopia é mais uma das análises que efetuaremos a todos na seleção. O objetivo é preservar a carreira deles.
Pergunta - Mas não seria melhor que a decisão ficasse na intimidade do grupo, da mesma maneira que as análises de urina ou qualquer outro exame médico? Qual será o procedimento se algum exame der positivo?
Passarella - Sei manejar perfeitamente a intimidade do grupo. Nunca vou sair dizendo que fulano tem cinco cáries, para dar um exemplo absurdo.
Pergunta - Qual é sua posição sobre a droga?
Passarella - A droga é um flagelo. E o mais grave é que agora está ao alcance de qualquer um, especialmente dos jovens. Não quero parecer um paladino, mas não me calarei.
Pergunta - Há droga no futebol?
Passarella - No futebol vale o lema mente sã em corpo são.
Pergunta - Você não respondeu a pergunta...
Passarella - Porque não sei. Se soubesse, denunciaria.
Pergunta - Você se incomoda que se questione a convocação?
Passarella - Quando estava do outro lado, sempre tive respeito pelo técnico da seleção. Muitos se surpreenderam porque chamei o meia Espina. Mas ninguém se atreve a dizer quem deve jogar.
Pergunta - Você convocou muitos jovens. É porque pode manejá-los melhor?
Passarella - Não, é porque acredito que o futuro está com eles. Quando tinha a idade deles eu queria comer o mundo.
Pergunta - Nunca teve medo?
Passarella - Claro que tive, mas como sou orgulhoso, dissimulei. Como no dia em que estreei no River, um clássico contra o Boca Juniors em Mar del Plata.
Era a primeira vez que eu viajava de avião. Ao meu lado ia outro rapaz, cujo nome não vou dizer, ma mesma situação. Íamos agarrados à poltrona, em pânico. De repente, ele perguntou: "Não vão nos servir nada?". Então um dos jogadores "vivos", disse-nos: "Peçam ao piloto um tíquete para uma coca e um sanduíche que depois eles entregam". Não fui, porque meu estômago não suportaria, mas meu colega foi com dinheiro na mão. Caçoaram dele várias semanas. Poderia ter sido eu.
Pergunta - Os jogadores de hoje também são ingênuos?
Passarella - Eles têm mais jogo de cintura, mas é uma pena que não prossigam os estudos. Fazem dinheiro mais rapidamente e quando compram um apartamento e um carro acham que têm tudo.
Pergunta - Você não cerceia a liberdade de um jogador ao impor os seus conselhos? Dizem que você ficou maluco quando o meia-atacante Ortega preferiu comprar uma pick-up japonesa antes de um apartamento...
Passarella - Há jogadores que vieram de infâncias difíceis e compreendo que se sintam tentados. E se digo a eles que façam isto ou aquilo é porque os quero bem.
Quando estava na Itália, meus amigos me convidavam para esquiar ou nadar, de acordo com a época do ano. Eu não podia acompanhá-los. Jamais nevou em Chacabuco e, quando vi o mar pela primeira vez, estava com 16 anos.
Hoje me arrependo de não ter prosseguido os estudos. A única coisa que aprendi, além do futebol, foi o italiano. Mas gostaria de ter aprendido inglês, ou talvez não... Menem também não fala inglês e chegou a presidente.
Pergunta - Na sua casa você também é durão?
Passarella - Acho que sou bom pai. Fico preocupado para que Sebastián (que está terminando o colegial) e Lucas (que começou agora) estudem e sejam saudáveis.
Pergunta - Seus filhos têm cabelo comprido, usam brinco?
Passarella - Não, mas eles adoram futebol. E o River. Gostaria que fossem jogadores, mas acho que viram os sacrifícios que fiz e não querem saber disso.
Pergunta - No Mundial de 1978 você sentiu a pressão dos militares?
Passarella - Não. Além do mais, quantos argentinos sabiam o que acontecia? Na concentração vinha de helicóptero o general Videla e outros militares, pelo que me lembro, mais como torcedores. Em compensação, em 82, a coisa foi diferente. Viajamos à Espanha pensando que estávamos ganhando nas Malvinas. Quando nos demos conta de que os jovens morriam enquanto jogávamos, tive vontade de chorar. Como capitão, me arrependo de não ter tido a lucidez de tirar o time do torneio.
Pergunta - Foi por isso que no último jogo, na derrota para o Brasil, você se negou a trocar de camisa com os rivais?
Passarella - Não o fiz porque estava nervoso. Nunca gosto de perder, ainda mais num Mundial. Jamais chorei num campo, nem nos vestiários, para não demonstrar fragilidade. Mas quando cheguei no hotel, me tranquei no banheiro e chorei três horas seguidas.

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