São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 1994
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Autor cultuou as ciências

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

É difícil não rolar de rir lendo Augusto dos Anjos. Embora tudo na obra leve a uma expressão radicalizada e sem precedentes –a ponto de ter sido classificada como "de mau gosto" na época– da tragédia.
Nascido numa família de proprietários de engenho da Paraíba, Augusto dos Anjos testemunhou a derrocada financeira familiar que culminou com a venda do engenho do Pau d'Arco, onde passou a infância.
Terminou tendo que ganhar a vida a duras penas como professor, primeiro na Paraíba –de onde saiu por desentendimentos políticos–, depois no Rio de Janeiro –para onde se mudou com a mulher– e, por fim, em Leopoldina, Minas Gerais –onde morreu meses depois de ter chegado.
Poucos escritores chegam à radicalidade de cruzamento entre vida e obra, por exemplo, do célebre "Soneto" escrito para o filho natimorto do poeta: "Porção de minha plásmica substância,/ Em que lugar irás passar a infância, / Tragicamente anônimo, a feder?..."
Obcecado pela linguagem da ciência e da filosofia da época (Spencer, Haeckel, Schopenhauer, Comte, Darwin), terminologia com que teve contato durante os anos que passou na Faculdade de Direito do Recife, sob a forte influência cientificista de Tobias Barreto, Augusto dos Anjos criou uma poesia que é o avesso do romantismo, um expressionismo desvairado e com momentos geniais de humor.
No seu vocabulário mórbido e científico, que contamina poesia, prosa e correspondência ("Eu, Ester e Glorinha, conquanto esta esteja experimentando pequeno acidente mórbido, devido à fase crítica da dentição, vamos passando na forma regular do costume", escreve à mãe, do Rio de Janeiro), o poeta parece exprimir um desesperado desejo de unir corpo e alma numa subjetividade matérica, localizando a subjetividade no corpo, em sua "plásmica substância", em moléculas e fluidos orgânicos.
Uma antipsicanálise e uma antipsicologia, que vê o homem como um "agregado" na tentativa de dar uma materialidade ao sofrimento subjetivo.
O mais radical, no entanto, é que isso não ocorre sem o mais deslavado humor. As rimas mais esdrúxulas atiçam incessantemente o riso, por sua inteligência incongruente, a semente do novo, de um sentimento poético onde um sentido cômico e a tragédia andam de mãos dadas até as últimas consequências.
O lamento trágico é transmutado em jogo de rimas desvairadas, criando, ao mesmo tempo e curiosamente, uma música perfeita, como se só através do humor fosse possível fazer face a essa rachadura insuportável entre a alma (a subjetividade) e o mundo, essa rachadura que nem a ciência consegue resolver –impossibilidade que Augusto dos Anjos apenas expõe ao adaptar-lhe o vocabulário para o universo poético.

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