São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 1994
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O espetáculo perde Guy Debord, o seu crítico mais radical

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Lide número um:
Enquanto no Brasil a moçada 68 assume o poder, lá fora seus heróis vão aos poucos desaparecendo, de morte morrida (Jerry Rubin) e provocada (Guy Debord).
Lide número dois:
Ironia das ironias: Guy Debord, 62, o maior crítico da "sociedade do espetáculo", preferiu morrer de forma espetacular, suicidando-se em Champont (interior da França), no segundo dia de dezembro.
Lide número três:
Quem ainda se lembra da Internacional Situacionista? Não, sua sede não ficava em Moscou e o Partido Comunista nada tinha a ver com o negócio. Aliás, ela nunca teve sede: só ambições subversivas. "Nós destruiremos este mundo", prometia o editorial de seu órgão oficial, lançado em 1958. Bazófia pura. Guy Debord, seu sumo pontífice, se autodestruiu primeiro.
Situacionista porque, para Debord e seus apóstolos, o futuro da arte estava na construção de situações passionais vividas em criatividade permanente. Internacional porque, a exemplo de outros movimentos de vanguarda, artísticos e/ou políticos, pretendia dar a volta no planeta. Filhos bastardos dos heréticos medievais, dos revolucionários utópicos do século 19, do jovem Marx e de Saint-Just, os situacionistas esticaram até Maio de 68 as alucinadas utopias do surrealismo e do dadaísmo.
Livro de cabeceira
"O tédio é sempre revolucionário", proclamava um grafito riscado nos muros de Paris há 26 anos. Obra dos situacionistas. Suas bombásticas quimeras contaminaram os agitadores do "chienlit" parisiense. "A Sociedade do Espetáculo" foi um dos livros de cabeceira da estudantada européia, só perdendo em prestígio e venda para o de citações de Mao e para as releituras marxistas de Althusser. Traduzido para os idiomas básicos –e inclusive para o português de Portugal, em 1972 (Edições Afrodite)–, transformou Debord numa espécie de Breton da sociedade de massas.
Suas idéias, dispostas em 221 pequenos arrazoados, retomam as críticas de Feuerbach ao culto das imagens, da cópia e da representação estimulado pelo cristianismo, atualizam as observações de George Lukács sobre a reificação do homem contidas em "História e Consciência de Classes" e dadaízam as teses de Marx sobre o conceito de mercadoria nas sociedades capitalistas. Na mira, a espetacularização do mundo. Uma praga alienante, banalizadora, uniformizante e apassivadora.
"Petrificação da vida"
As pessoas não mais compram (ou consomem) mercadorias, e sim imagens. E assim deixam de ser pessoas para se tornarem espectadores e viverem uma pseudovida. "Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular também são armas para o reforço constante das condições de isolamento das multidões solitárias", invectiva Debord, adaptando às novas tecnologias a velha suspeita marxista de que toda invenção feita a partir de 1830 fornece armas ao capital contra a revolta das classes desfavorecidas.
Coincidência ou não, o situacionismo de certo modo nasceu na antiga URSS, justo no ano em que morreu Stalin, 1953. Tinha outro nome, Letrismo, e um profeta de 19 anos, Ivan Chtcheglov, cujas dramáticas imprecações contra a banalização do real e a "petrificação da vida" calaram fundo no rebelde Debord. Chtcheglov propunha como antídoto ao tédio nas cidades uma nova concepção de urbanismo e arquitetura que permitisse ao homem andar a esmo por bairros que até no nome (Feliz, Útil, Trágico, Nobre etc) corresponderiam a "estados mentais". Nascia a psicogeografia.
Pivetes culturais
Quatro anos depois, numa cidade do Norte da Itália, Debord tomou conta de um congresso unificador de tendências vanguardistas, com apenas oito gatos pingados, e lançou a grife situacionista. O dadaísmo quis suprimir a arte sem fazê-la –o surrealismo quis fazer arte sem suprimi-la– os situacionistas tentariam mostrar que "a supressão e a realização da arte são aspectos inseparáveis de um mesmo projeto de superação artística".
E promoveram uma série de "assaltos à cultura". Planejaram mudar a cor das águas de Veneza, pintaram murais que logo fragmentavam em pedaços vendidos a metro, puseram palavras de ordem revolucionárias nos quadrinhos de Steve Canyon, adulteraram pinturas "kitsch" de feira com pinceladas abstracionistas, montaram livros com toda sorte de detritos impressos e os encadernaram com lixa, para que causassem danos até quando fechados nas estantes.
Pivetes culturais, punks "avant la lettre", os situacionistas não escaparam ao melancólico destino de todas as vanguardas: acabaram nos museus que tanto os horripilavam. Cinco anos atrás, o Centro Georges Pompidou relembrou suas travessuras com uma exposição que em seguida rumou para Londres e Boston. Recuperados pelo mundo das artes, tornaram-se objetos de consumo cultural, espetacularizaram-se. Debord não andava deprimido à toa. Uma vez mais a outra situação vencera.

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