São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 1994
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Diferença causa escândalo

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A propósito de artigo meu publicado neste espaço no dia 13 de novembro, sobre o livro "A Curva do Sino", pipocaram manifestações de toda ordem, inesperadas como se tivesse eu de repente aberto as jaulas de um zoológico que há muito se esquecera da noção de liberdade.
Espantadas, as bestas reagiram: ora através da covardia típica de quem não merece experimentar certos sentimentos, ora através do simples fruir da sensação semi-esquecida, ora através do embasbacamento que resulta na gagueira.
As manifestações favoráveis ao artigo foram da ordem de 90%. E eu –como cronista de província–, agradeço aqui de público o apoio recebido. Os outros 10% compõem-se as cartas fascistas e ameaçadoras ou de publicações de desocupados que querem se promover a qualquer custo –preferivelmente montados feito parasitas no nome de quem produz algo que preste.
O texto gago dos antropólogos (ou dos leigos) brancos sobre o racismo contra negros no Brasil continuou a ocupar páginas e páginas de jornal. Difícil encontrar algo de aproveitável nessas considerações eruditas dissociadas da realidade e da experiência.
Neste sentido, cabe aqui uma observação ao único desses textos digno de qualquer resposta. O correspondente da Folha em Washington, Carlos Eduardo Lins da Silva, contestou em seu artigo no último dia 4, a minha afirmação de que os Estados Unidos são o pior lugar do mundo para um negro viver hoje.
Mas o correspondente equivocou-se. A minha afirmação não se refere a condições de ordem econômica –é óbvio que, do ponto de vista econômico, é melhor viver nos EUA do que no Brasil ou na Nigéria.
Refiro-me a outra coisa, que exatamente escapa ao universo acadêmico das estatísticas. E nada mais americano do que querer esgotar a realidade através de estatísticas. Mas a realidade escapa –é mais ampla e complexa do que os americanos gostariam.
Morei tempo suficiente nos Estados Unidos –como escritora visitante da Universidade da Califórnia em Berkeley–, e tenho sangue negro suficiente nas veias para poder afirmar o que afirmei. Nos Estados Unidos, tudo contribui para que um negro se lembre durante as 24 horas do dia que ele é negro.
Nos Estados Unidos, um negro não é simplesmente um ser humano –é um negro. Não há inferno maior. É como ter um sinal de nascença na testa, do qual a pessoa se esquece porque é parte de seu corpo como qualquer outra, mas cuja existência incomoda o resto da sociedade que nasceu com sinais não tão visíveis.
A sociedade americana está armada de tal modo –por vezes até com a melhor das intenções– que esse sinal seja eterno estigma. Não é à toa que grande parte das mulheres negras americanas, como pude observar inclusive na Universidade de Berkeley, alisa o cabelo.
Neste sentido, os negros americanos vivem um paradoxo. São os mais politizados, os mais conscientes, os mais combativos na luta pela igualdade social –basta lembrar movimentos como o Black Power ou a atual onda de "reparação" da raça negra, que deu em coisas como a lei das cotas para negros em instituições públicas americanas–, mas continuam alisando o cabelo. Talvez o façam ainda como forma de esconder um pouco o sinal apontado por dedos em riste a todo momento. É preciso um pouco de paz, afinal.
Também neste sentido, e por mais que a elite branca discriminadora aja contra, o Brasil (além da África) é o melhor lugar para um negro viver –porque aqui o sinal se perde misturado nas testas de inúmeras tonalidades, queira ou não a minoria branca.
Quanto às cartas dos fascistas que reagiram a meu artigo, elas são resultado direto da incorporação troncha que certos segmentos da sociedade brasileira importam dos americanos, como eu também já disse.
São resultado direto do comportamento pseudocorreto, politicamente falando, de uma imprensa que trata os negros no Brasil como minorias ridicularizadas em colunas "étnicas", como também trata os homossexuais. As colunas "gay" ou "black" dessas revistas de perfumaria não fazem outra coisa senão reforçar os estereótipos da bicha louca (o lado risível do homossexual) e do negro erótico (o lado suportável da raça).
É preciso abafar o escândalo que a diferença (de raça e de sexualidade) certamente provoca no público tapado que consome esse tipo de imprensa supérflua –a solução é passar um pouco de manteiga, ou de maionese como diz a propaganda, para que o produto possa, somente então, ser engolido.
No Brasil, os negros só se prestam a esse tipo de manipulação sacana porque são, do ponto de vista econômico, historicamente (e ainda hoje) frágeis. Os homossexuais, hipotética minoria numérica, perdem para outras minorias comprovadas (como judeus e nipônicos, por exemplo), também porque estas têm poder econômico.
Quem imagina uma coluna intitulada "mondo nipônico" escrita por uma gueixa japonesa em dicção jocosa? Não haveria. Os japoneses não se prestariam a tal palhaçada. No Brasil, a discriminação racial é estreitamente vinculada ao histórico de poder econômico. Só cego não vê. Pelé vive dizendo por aí que nunca foi discriminado no Brasil. E é claro que não foi.
No Brasil, o poder econômico está na mão da elite branca discriminadora, a política e a empresarial –parcela ínfima dessa elite é perfeitamente frequentável. Pior que ela é a outra: a elite da perfumaria, da propaganda, da imprensa supérflua, porque concentra enorme capital de giro (financeiro e humano), que manipula como quer, fundando-se na pseudocultura, na pseudo-informação, a serviço de cobras fascistas entocadas, à espera ansiosa do primeiro bote.
No Brasil, serão necessários elefantes para esmagar a cabeça dessas cobras. Os elefantes são da África. Os macacos também –é preciso, aliás, o talento e a agilidade natural dos macacos para abrir jaulas até mesmo sem querer. É preciso apenas isso: estado de natureza. Nem roupa de grife, nem droga na veia.

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