São Paulo, quarta-feira, 14 de dezembro de 1994
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Por uma política contra a corrupção

MODESTO CARVALHOSA

"Os países formulam e executam políticas para tudo, menos para a corrupção.".
Michael Skol, subsecretário de Estado norte-americano.

A posse do governo Fernando Henrique Cardoso, dentro de poucos dias, traz sempre a questão do enfoque que os sucessivos governos dão ao tema corrupção.
O consistente programa do novo presidente, lançado em publicação de 300 páginas, apesar de demonstrar competência e experiência no setor da administração pública, faz apenas algumas menções esporádicas ao problema, e sempre com linguagem delicada para não ferir os sentimentos dos cidadãos.
Nota-se que o problema da corrupção administrativa é timidamente colocado naquele documento em meio a outras prioridades de desenvolvimento social, que retiram a força do fenômeno em si, cuja gravidade se encontra estampada diariamente em todos os jornais do país.
Esse escapismo a uma abordagem corajosa do tema é tendência universal.
Os governos evitam o enfrentamento do trato do fenômeno da corrupção, negando o quanto possível a sua existência no seio da administração, por instinto de conservação do prestígio da classe política e do próprio sistema de democracia.
Em consequência, mesmo aqueles governantes de relevante probidade somente tomam providências administrativas quando surgem escândalos de grande porte, que afetam e mobilizam a opinião pública.
Ocorre que a corrupção constitui um fenômeno permanente e estrutural que, nas suas multiplicidades e sofisticadas formas, sobrevive no organismo estatal mesmo quando os governantes respectivos são reconhecidamente probos.
Como pudemos colher das intervenções dos diversos países do Grupo do Rio, reunidos em Quito nos fins de outubro, em torno da probidade administrativa, a corrupção é um fenômeno sistêmico, que demanda o estabelecimento de uma política ampla e profunda, cuja formulação, de curto, médio e longo prazos, deve ter a mesma preferência e metodologia dedicadas às áreas sociais críticas.
Por isso a consciência do caráter permanente desse delito no seio do Estado demanda que se formule e execute uma política de governo sobre o mesmo.
E por se tratar a corrupção de um sistema altamente sofisticado, que opera com dinâmica própria no seio das administrações, devem os governos declarar sua disposição de combatê-la, admitindo e apontando essas características autônomas e, assim, criando uma convicção, junto a opinião pública, de que o fenômeno não é episódico, factual ou necessariamente decorrente da improbidade pessoal de determinados mandatários ou governos.
E a criação dessa mentalidade junto à cidadania possibilita que se viabilize a forma mais efetiva de combate, qual seja, o controle social sobre os atos e contratos administrativos e suas conexões com o mundo político. Nesse passo o programa FMC aponta caminhos, ao tratar da parceria Estado-sociedade, sem, no entanto, chegar a aprofundar o tema da improbidade.
Outro aspecto relevante, levantado na reunião de Quito, foi o da exportação do fenômeno. Os países criam corrupção ao financiarem recursos externos. Nesses casos a concessão de empréstimos é sempre vinculada à contratação de obras, serviços e produtos do país emprestador, inibindo a realização de concorrência aberta internacional e a participação de concorrentes internos.
Essa operação permite que um pequeno grupo de empresas do país financiador adjudique os contratos, com significativo sobrepreço. Nesse processo são oferecidas propinas aos políticos e funcionários envolvidas na operação. Disso decorre que o país financiado paga um valor dobrado ou triplicado das obras ou serviços, exaurindo os cofres públicos.
Seja, portanto, no plano interno como no de colaboração internacional, a vontade política é fundamental na instituição de mecanismos de combate à corrupção sistêmica.
Deve-se, portanto, admitir claramente que a ética pública é uma questão de Estado e não de governo.
E, com essa perspectiva, a cidadania tem de ser chamada para tomar o seu papel de controlador social nessa luta, imbuindo-se de um senso ético que possa se transformar em pressão e exigência de conduta por parte dos governos, em todos os níveis.
A propósito, não há mais que discutir sobre o peso da corrupção administrativa e política sobre a situação de miséria em que se encontram os grandes contingentes populacionais da América Latina. O desperdício de bilhões de dólares anuais nas práticas de sobrepreço, financiamentos vinculados, desvio de verbas, contratação de obras não-prioritárias (muitas vezes não executadas), subornos e demais formas da apropriação de recursos públicos para fins privados estabelecem o estado de desperdício dos recursos que deveriam ser alocados para as áreas sociais prioritárias.
Deve, assim, ser elevado o combate à corrupção administrativa em nível de prioridade mediante o estabelecimento de políticas que possam fazer com que a modernização do Estado não reverta a favor de determinados grupos e interesses privados.
Outrossim, nesse conclave do Grupo do Rio, foram ressaltados os efeitos desastrosos que a corrupção sistêmica traz para o esforço de se estabelecer maior governabilidade em nossos países. Nesse âmbito, a ausência de partidos verdadeiramente institucionais demanda um controle social o mais próximo possível do exercício da função pública.
Ademais, foi ressaltado que a corrupção, além de afetar o quadro social e a governabilidade, impede o estabelecimento da livre concorrência e do livre comércio, pela imposição de preços viciados em setores fundamentais, impedindo a modernização das relações econômicas.
Não há razões e nem tempo a perder. Devem os governos, ainda nesta década, enfrentar com políticas apropriadas o problema da corrupção e seu inevitável produto, a miséria.

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