São Paulo, quinta-feira, 15 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Desconstituição

OTAVIO FRIAS FILHO

Está em voga a teoria de que o governo FHC não dará manchete. Com uma administração de bom nível e a economia estabilizada, a imprensa terá de focalizar outras áreas de escândalo; uma verdadeira reeducação jornalística estaria em curso.
A futura primeira-dama (ou primeira-mulher ou primeira-intelectual) roçou o tema quando disse que tinha em mente disciplinar os repórteres. E por toda parte se vêem tucanos ministrando lições gratuitas de jornalismo.
Nunca é demais lembrar que o Cruzado e o Plano Collor duraram, cada um, em meio à credulidade geral, pelo menos um ano. Verdade que as condições agora, dizem, são muito mais favoráveis. Mas também se dizia isso nas outras vezes.
Parecido com o que os psicanalistas chamam de formação reativa, o fato é que o novo governo, antes até da posse, já se mostra cioso em cumprir um compromisso: fiscalizar de maneira implacável os atos da imprensa.
Nessa fiscalização os tucanos poderão acomodar-se confortavelmente no lugar onde sempre foram acusados de estar. A metáfora do muro, aliás, sintetiza defeitos e qualidades do partido de FHC.
Os tucanos estão "no muro" por não serem vistos como homens de ação, mas como cabeças-de-ovo, intelectuais sibilinos para quem nada é sim ou não. As pessoas desconfiam; no fundo sua preferência ainda é por líderes mais sanguíneos.
Ao mesmo tempo as propostas dos tucanos, ou melhor, seu modo de raciocinar é tortuoso demais para o esquematismo jornalístico ou eleitoral. Pensam em termos de nuances, de gradações, e essa virtude reforça a imagem de indecisos.
A imprensa, ao contrário, está acostumada a atuar em termos não só dicotômicos, mas contrastantes, porque é no contraste entre o esperado e o inesperado que está a notícia.
Do choque entre hábitos mentais tão díspares o que se pode esperar é um festival de incompreensões e desmentidos. Quanto ao tédio jornalístico, ainda parece cedo para comemorar ou lastimar.
O futuro presidente falou ontem em "desconstitucionalizar" o país. Sem discutir o mérito da proposta, é interessante notar que ela faz parte da tendência geral de despolitização do mundo.
Ao contrário da velha estrutura industrial, as tecnologias mais recentes favorecem o sucesso individual e desmantelam qualquer aspiração coletiva.
As fronteiras desaparecem e a distopia da nossa época é a de um mundo dividido entre uma classe média integrada e a grande massa de excluídos, para quem não há lugar nem função na nova ordem.
Essa classe média, cínica e hedonista, nada tem a ganhar com a política. E à multidão de excluídos falta uma ideologia que ultrapasse o ressentimento nacionalista ou o refúgio da religião.
Nosso século esteve encharcado de política. Agora é a vez da neutra administração dos consensos –lá fora, o de Washington; aqui dentro, o de Ibiúna mesmo.

Texto Anterior: Pesquisática
Próximo Texto: PARA QUÊ; O HOMEM QUE TENTA; ATLETAS DE CRISTO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.