São Paulo, segunda-feira, 19 de dezembro de 1994
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Erro técnico?

WAGNER GONÇALVES

É simples. Competiria ao procurador-geral da República apresentar o "ato de ofício" do ex-presidente que beneficiasse as empresas que colocaram dinheiro na conta de Ana Aciolli para que o desfecho do processo fosse outro. Não tendo sido apresentado e provado tal ato, "que é da essência do tipo penal (corrupção passiva)", as provas constantes dos autos tornaram-se inócuas, porque imprestáveis. Assim, a culpa pela não-condenação de Collor, que "todos sabem criminoso", é do procurador-geral da República, "que foi inepto e omisso".
A par disso, os ministros do Supremo Tribunal Federal, Carlos Mário Velloso, Sepúlveda Pertence e Neri da Silveira, teriam proferido "votos políticos" e não jurídicos, já que, sendo "imprestável a denúncia", eles teriam preferido ficar com o sentimento popular da culpabilidade do ex-presidente.
Afora a violência que tais argumentos representam para a pessoa do procurador-geral da República e para todos os membros do Ministério Público Federal, não é menos verdade que eles desrespeitam, de maneira cruel, ministros do Supremo, que optaram, também de sã consciência, pela denúncia, pelas provas dos autos e pela culpabilidade dos réus, principalmente do ex-presidente Collor.
Apesar de não se querer questionar decisão do Supremo Tribunal Federal, porque discutir decisão da mais alta Corte do país –que tantos serviços tem prestado à nação, ao longo de sua história– é profundamente inócuo, não é menos verdade que os membros do Ministério Público Federal sentem-se invadidos por profundo sentimento de indignação ante questões que se colocam na imprensa, todas açodadas em achar um culpado, em face do sentimento nacional de desassossego que a não-condenação do ex-presidente gerou.
E a posição do Ministério Público Federal no caso, referendada por três ilustres ministros do Supremo Tribunal Federal, é de todo defensável.
O ex-presidente Fernando Collor foi acusado do crime de corrupção passiva pelo fato de ter recebido, direta ou indiretamente, em razão do cargo de presidente da República, que exercia ou iria exercer, vantagem indevida.
O tipo penal é previsto no art. 317 do Código Penal, assim redigido: "art. 317 – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem".
E os escoliastas são unânimes em reconhecer que o crime se consuma pela "simples solicitação da vantagem indevida, com o recebimento desta ou com a aceitação da promessa". As penas previstas, para a prática de tal crime, são a de reclusão, de um a oito anos, e multa.
Na denúncia, o Ministério Público Federal evidencia todos os fatos e, durante a inscrição criminal, rastreou imensa quantidade de cheques que chegaram à conta de Ana Aciolli, que pagava todas as despesas da Casa da Dinda.
Mostrou que um dos acusados, PC Farias, usando da amizade e do prestígio de ser tesoureiro da campanha do ex-presidente, e com o conhecimento deste, obtinha imensos recursos junto a empresas, que eram depositados em contas-fantasmas, sendo que parte, num total provado de US$ 1.575.982,29, foram diretamente para a conta da secretária de Collor e esta repassou tal numerário (parte) a Rosane Collor de Mello e pagou gastos e despesas particulares do ex-presidente. Foram também beneficiados por recursos advindos de fantasmas e empresas ligadas a PC, do mordomo à ex-mulher do acusado principal.
Contas-fantasmas eram abastecidas por empresários extorquidos por PC. Caso típico deu-se com a Mercedes-Benz, cujos diretores confessaram a extorsão do segundo principal acusado e o pagamento de US$ 1 milhão, com depósitos efetuados na conta do também fantasma José Carlos Bonfim, um dos abastecedores da conta corrente do ex-presidente, nominada por Ana Aciolli, sua secretária.
A movimentação comprovada pelos autos demonstra o recebimento de cheques de empresários por fantasmas, após a eleição de 1990, afastando a tese do delito eleitoral. O fluxo financeiro detectado em cheques pela acusação e constante dos autos como destinado a pessoas ligadas ao ex-presidente alcançou US$ 8.246.135,43.
Enfim, tudo foi em vão, prevaleceu o entendimento supostamente técnico, de que faltou "ato de ofício". No entender do Ministério Público Federal, tal ato não é da essência do tipo penal. Ele é fator de agravamento da pena, como previsto no parágrafo 1º do art. 317, e não essencial à consumação do delito.
Pode-se perguntar agora: como fazer prova deste ato, quando o réu é ex-presidente da República, que, diretamente, não libera dinheiro para obras, não assina cheques, não homologa licitação, não passa recibos e nem irá escrever para seus subordinados, é lógico, para agir desta ou daquela maneira, para beneficiar uma ou outra empresa?
Com as limitações que estas linhas nos permitem, este é o nosso entendimento. Assim, não venham com acusações açodadas e levianas. O Ministério Público Federal fez sua parte.
Nem acusem os ministros, que condenaram Collor, de terem proferido "votos políticos e não jurídicos". Ora, como disse o eterno João Mangabeira, o Supremo Tribunal Federal é tribunal "jurídico-político". A inocuidade de resvalar para tal acusação está na pergunta: quais os que proferiram, realmente, votos políticos?

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