São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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Evitar a ideologia do poder autófago –eis aí um belo desafio para governo e Congresso

O exercício do poder

MARIO CESAR FLORES

De um modo geral, o exercício do poder (político e administrativo) –com suas benesses e seus dissabores– depende de três tipos de influência que atuam sobre suas instituições e seus mecanismos formais: o carisma, o poder econômico e a organização (Igreja, partidos políticos, "elites revolucionárias", Forças Armadas, corporações burocratizadas, complexos sindicais).
Lênin com o Partido Comunista, Hitler com o Nazista e Perón com o sindicalismo o exerceram via carisma e organização; nas democracias burguesas do fim do século 19 e início do 20 era decisiva a influência do poder econômico na eleição das representações políticas; e o regime de 1964 no Brasil fundamentou-se principalmente na organização militar.
Apenas numas poucas democracias ricas, com tradição de liberdade e bons padrões de educação e distribuição de renda, essas influências, embora existam, são menos sensíveis –salvo a organização partidária, geralmente importante.
A ideologia ajuda a explicar como, para que e em proveito de quem o poder é exercido; ela fortalece o carisma (populismo), o poder econômico (doutrinas liberais) e a organização (ideologias sociopolíticas, religião), mas a operacionalização do poder depende das influências instrumentais. Pode haver exercício de poder sem ideologia, embora geralmente frágil porque carente de referência, mas a ideologia sem poder que a operacionalise não passa de abstração vazia.
Como se infere dos exemplos acima, carisma, poder econômico e organização influenciam isoladamente ou em combinação, em regimes autoritários e democráticos. O carisma costuma associar-se a alguma forma de autoritarismo, às vezes travestido de democracia pelo voto da massa manejada. A organização hierarquizada também é propensa ao uso de artifícios autoritários; sua combinação com o carisma pode induzir autoritarismo forte, como aconteceu nos exemplos soviético e alemão.
Quanto ao poder econômico, nos países de economia de mercado e pluralismo político ele costuma se manifestar através dos mecanismos da democracia vulneráveis à influência do dinheiro, mas existem exemplos de associação com a organização militar e (ou) religiosa e até com lideranças carismáticas. Em suma: carisma, poder econômico e organização são instrumentos do poder autoritário e democrático –neste, de forma mais pluralística. Feitas essas considerações, vale perguntar: como está o Brasil nesse contexto?
Liderança carismática não existe desde Vargas; Jânio foi uma experiência de classe média e Brizola é um carisma geograficamente restrito. O poder econômico existe e se manifesta sobretudo através da representação política, embora também se estenda aos meandros da máquina executiva, mas os interesses conflitantes, regionais e setoriais, impedem que ele se imponha unidirecionalmente.
Finalmente, como as Forças Armadas se retraíram, a Igreja Católica está dividida (as demais ainda não são ponderáveis), os sindicatos sofrem as mazelas vividas em todo o mundo (crescentes com a redução da importância relativa da grande indústria no fim do século) e, principalmente, os nossos partidos resultam mais da junção de interesses do que de convicções programáticas, é natural que a influência da organização seja frágil e errática. Nossas organizações políticas, corporativas e religiosas (e as ONGs em geral) são hoje mais aptas para bloquear do que para construir.
Poder-se-ia conjecturar que, como acontece nas grandes democracias, a fragilização dos pilares instrumentais de influência ajudaria nossa democracia.
Em tese, isso é verdade, mas na prática a fragmentação conflituosa do carisma, do poder econômico e da organização e a consequente paralisia ou pelo menos desarmonia das ações prejudicam os processos legislativo e administrativo e o sucesso do processo democrático.
Um certo equilíbrio entre as influências dificulta a existência do poder autoritário, mas sua quase ausência produz mais anomia que democracia, ao menos em país onde não predominam a classe média e o bem-estar generalizado, que moderam e "temperam" a importância dos três pilares instrumentais clássicos.
Em qualquer país e época (o Brasil não é exceção), a fragilidade operacional do poder costuma abrir espaço para dissenções e decisões equivocadas que fragmentam, descoordenam e impedem a formulação e execução de planos nacionais, beneficiando interesses paroquiais, de grupos e até individuais.
E costuma abrir espaço também para o poder parametrado por uma ideologia que, aliás, nunca é nula onde há burocracia estamental, como há no serviço público: a ideologia secular sem objetividade, que justifica o poder por si mesmo, pelo prazer de exercê-lo, pelo seu potencial de benesses grandes ou pequenas, por sua mediocridade satisfeita.
Ela contamina os agentes políticos e servidores públicos sem amparo em firmes e transparentes influências capazes de dar eficiência e objetividade ao poder, ainda que discutível em seus rumos e propósitos. A tendência à neutralização das ilhas de esforço competente é o resultado natural de tudo isso.
Para chegarmos ao estágio de eficiência objetiva do poder em que se encontram as democracias ricas e consolidadas, de razoável "Welfare State", precisamos de lideranças que, mesmo sem o carisma dos grandes líderes políticos –grandes, mas por vezes perigosos como foi o caso de Hitler, que se aproveitou da quase anomia de Weimar–, tenham a ascendência política, intelectual e moral capaz de bem conduzir o país.
E precisamos de partidos e outras instituições bem organizadas e vocacionadas para a democracia que, associados às lideranças sadias e ao que há de útil no poder econômico (nem todo ele, é claro), confiram ao exercício do poder consistência, eficácia e objetividade, evitando que ele se dissolva na ideologia secular do poder autófago. Eis aí um belo desafio para o futuro governo e Congresso!

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