São Paulo, sábado, 24 de dezembro de 1994
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Sabor de comunhão

FREI BETTO

Natal é bom em sonhos de criança. Para uns, o Papai Noel consumista, solícito aos pedidos que, na manhã deste dia 25, se materializam em papéis brilhantes revestindo caixas sedutoras. Para outros, o nascimento de Jesus comemorado na oração em família ou na Missa do Galo que, agora, se adianta, porque a noite, quanto mais avançada, mais arisca... Para muitos, uma noite como outra qualquer, que marca a lenta agonia dos deserdados.
Para nós, adultos, Natal é um nó no centro do peito. Melhor seria que pudéssemos ignorá-lo. Mas a publicidade empurra pela goela abaixo o imperioso dever de dar presentes.
"Fica terminantemente proibido associar o Natal à compra e venda de mercadorias". Um decreto assim, traria muito alívio aos nossos bolsos e grande alegria ao coração. Contudo, viria em seu bojo um desconforto: como comemorar o Natal? Não sei se os terapeutas vêem crescer a clientela na época natalina. Mas que ela abre um enorme buraco em nosso peito, disso não tenho dúvidas.
O Natal traz à tona todas as nossas carências, limitações e vacilos. Com que cara o político corrupto comemora o Natal? E o adúltero, como escapa furtivamente para dar um telefonema insosso no orelhão da esquina? E os traficantes que ostentam armas nas bocas-de-fumo, distribuem balas de metralhadora aos filhos na noite de Natal?
Ora, Natal é o dia do aniversário de Jesus. O desconforto que se sente no fundo da alma é o desafio de nascer de novo. Revestir-se dos "sentimentos de Cristo", como recomenda São Paulo. Deixar de lado as amarguras, os ressentimentos, os ciúmes, a inveja, o desejo de ver o outro na desgraça, e tirar primeiro a trave que temos no próprio olho -antes de denunciar o cisco no olho alheio. Lançar os braços em abraços, a boca em beijos, o coração entornando de afeto. Amar despudoradamente, pois só assim a vida perdura. Vinicius de Moraes cantava que o amor é eterno enquanto dura. Sabem os amantes que o amor dura enquanto é terno.
Mas não basta inovar os gestos. É preciso assumir uma nova mentalidade. Boa preparação para o Natal é dar um balanço se, ao longo do ano, torcemos pelo time da morte ou pelo time da vida. Liberamos o assassino que nos habita, aplaudindo a surra no pivete de rua e as agressões aos que têm a pele diferente da nossa? Ou tivemos a ousadia de defender os direitos humanos, a cidadania dos pobres e a irredutível sacralidade de cada ser humano, "imagem e semelhança de Deus"?
E se queremos fazer novos o homem e a mulher que nos povoam, por que não fazer novas também as situações que se encontram à nossa volta? Assim, o Natal terá força de transformação. E gosto de comunhão.
Porque Deus, servido na manjedoura, tem sabor de justiça.

CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO (Frei Betto), 50, frade dominicano e escritor, é membro da Fundação Sueca de Direitos Humanos e autor de "Batismo de Sangue" e "Cartas da Prisão".

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