São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 1994
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Viação

RICARDO SEMLER

Tem promessas que fazemos, não cumprimos, mas que não saem da cabeça. Foi assim com um ônibus que peguei na avenida Santo Amaro quando tinha 17 anos. Era véspera de Natal, final de tarde.
Lembranças tendem a ficar românticas à medida que engordamos; por isso, já comecei a imaginar que nevava do lado de fora dos vidros emperrados da Viação Santa Cecília. Com certeza era apenas mais uma garoazinha.
Aquela gente humilde subindo no ônibus com um panetone e uma sidra, outros segurando apenas a carteira com o olhar fixo à distância, gerou um nó na minha garganta.
Prometi solenemente que toda véspera de Natal subiria num ônibus para lembrar o quanto há para ser feito pelos que têm meios para isto. E nunca mais repeti a viagem.
Ficamos sensibilizados em algumas, parcas, datas do ano. Lembramos a insensatez de uma vida em gueto, de um apartheid horizontal que nos pega pelo estômago na saída de casa. Fazemos que não vemos, damos sinal com a mão de dentro de vidros fechados do automóvel, não insistam. A nossa fuga mais simples é em direção às autoridades. Que aprendem a tratar a miséria e a injustiça como assuntos de despacho.
Por outro lado, os nossos esforços pessoais são tímidos, paternalistas e condescendentes. Tanto em nossas cestas de Natal quanto na caixinha do carteiro. A frustração de uma sociedade de castas é aliviada pela falsa sensação de que estamos mitigando sofrimento e espalhando calor humano.
Mas há milhares de pessoas que doam o seu mais precioso patrimônio, o tempo, à redução deste fosso vergonhoso. São, quase todos, anônimos. Visitam creches de crianças abandonadas, passam tempo com velhinhos em asilos, doam horas a escolas, hospitais e penitenciárias.
Dão aula vital de humanidade, mas não contam com espaço na mídia, não têm acesso à fama ou ao reconhecimento, exceto pelo muito obrigado mais importante da vida: um aperto suave de mão no Natal, um beijo na face, um olhar úmido de solidariedade.
Apesar de todo o valioso espaço que nós, ocupantes ciumentos da mídia, preenchemos, não somos capazes de dar valor às pequenas generosidades. Não sabemos quem são, onde moram e o que os move. Se soubéssemos, pouca diferença faria, já que, refletindo o leitor, nos interessamos apenas pelo anormal, o condenável e o abrangente.
Gosto de achar que nunca cessarei de me revoltar com as mensagens carinhosas de empresas sacanas, ou redes de TV que ajudam a manter a miséria e proclamam amor ao país.
Nem com a imagem desesperadora de gente sem água por causa de incompetência e roubalheira, ou de office boys pendurados uns nos outros do lado de fora dos ônibus, em virtude de acordos que enriquecem os donos da frota pela retirada de veículos das ruas. Nem com o preço de túneis, viadutos e rodovias que desviam dezenas de milhões de dólares para os governantes, dinheiro este que teria garantido tetos, merendas e giz. A gestão efetiva deste país ainda é seara de criminosos.
Com um pouco de demagogia, e uma pitada substancial de falsa humildade, acabo novamente me penitenciando pelo ônibus que não tomei. Faço apenas um agradecimento, inócuo, àqueles que tomaram os seus ônibus de humanidade, em nome de todos nós que ficamos em casa.
Doar alimentos, roupas e dinheiro é necessário, mas na escala da verdadeira solidariedade vale um, contra os dez dos que sobem nos ônibus para doar tempo, amor e esperança. Obrigado a vocês, que sabem quem são. E um sincero Feliz Natal pra todos nós.

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