São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 1994
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A APOSTASIA UNIVERSAL DE ÁGUA BRUSCA

JORGE AMADO
1.

O apito do navio ressoou na distância anunciando a chegada próxima. Ao ouvi-lo, o coronel Tavinho –coronel Otávio Xavier d'Abadia, senhor de baraço e cutelo– suspendeu a leitura do jornal, exemplar de "A Tarde" atrasado de oito dias, depositou-o na mesa da escrivaninha, levantou-se da cadeira de braços. Até então acocorado no corredor, Inocêncio pôs-se de pé, abriu a porta da rua, ficou à espera do lado de fora.
O Coronel tomou do chapéu e da bengala –porque o chapéu gelot e a bengala de castão de ouro? Não estava na Capital, não ia visitar o Governador, porque então os escolhera? Vá-se saber porque.
2.
Olhar benévolo, o Coronel percorreu a Praça Dois de Julho: balançou a cabeça, satisfeito, gostava do lugar. Ali, em casas confortáveis, habitavam famílias abastadas, personalidades eminentes. O Juiz de Direito, doutor Hermes Rubim; o comerciante Miguel Franco, dono do Armazém Bela Galícia, de secos e molhados, correspondente do Banco do Brasil; doutor Olívio Lemos, Promotor Público; o farmacêutico Jeremias das Neves –não completara sequer o curso de farmácia, mas no diagnóstico e na receita dava de dez a zero em muito médico formado. No doutor Marcos Freire nem se fala: o doutorzinho –doutorzinho na voz das moças casadoiras, virgens assanhadas à vista do almofadinha– esse não lhe chegava aos pés. Na esquina, semi-escondido pela copa das mangueiras, sobranceiro, alteava-se o Solar –seis janelas sobre a rua, três de cada lado da porta de duas bandeiras, porta e janelas quase sempre fechadas–, a casa de Didina. Didina, ou seja, dona Esmeraldinha Montalbon de Sá Pacheco, viúva, herdeira de duas fortunas: a do pai, don Fernando Montalbon, dono de ruas, de casas e sobrados em Juazeiro e em Petrolina, e a do pranteado esposo, coronel Astrogildo de Sá Pacheco, antigo senhor da Cancela do Meio, hoje propriedade do coronel Tavinho: filha única, viúva sem filhos.
Herdeira universal, riqueza lendária, rendas incalculáveis e misteriosas, sovinice patente, ostensiva, glosada em prosa e verso. Nadava em dinheiro, economizava vinténs, aos sábados, dia dos esmoleres, trancava a chave a porta da rua.
Tema habitual das conversas nas calçadas, dando lugar a discussões e a apostas, segredo conservado a sete chaves, bulia com os nervos da população: onde e como havia sido aplicada a dinheirama encaixada pela herdeira quando da venda do latifúndio e, posteriormente, das casas e sobrados, inclusive o da Capital, este sim, um solar de verdade, no Corredor da Vitória. Onde e como ninguém sabia ao certo, circulavam rumores desencontrados: depósito em contas bancárias de renda compensadora e segura, ações de empresa ainda mais compensadoras, agiotagem a prazo curto e juros altos, por intermédio de terceiros, é claro. Terceiros, quem? Outro apaixonante motivo de discussão: Miguel Franco, Otaviano Lima, o da Sociedade de Peixes Salgados, o cegueta João Ribeiro, de Petrolina, banqueiro de bicho e agiota?
Quase nonagenária, dona Didina tinha por única companhia uma antiga cria da família, pouco mais moça que ela: os cabelos brancos e ralos da patroa, a carapinha alva e espessa da criada, sinhá Marocas, duas almas do outro mundo vagando no casarão mal-assombrado. Havia quem afirmasse serem irmãs por parte de pai –comentar a vida alheia, sem dúvida o esporte favorito dos vizinhos em Água Brusca, línguas afiadas, imaginação solta, benza Deus!, poços de veneno, falta do que fazer, arte de matar o tempo.

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