São Paulo, quarta-feira, 28 de dezembro de 1994
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Balanço de uma missão

AUGUSTO MARZAGÃO

Disse o arqueólogo francês André Leroi-Gorhan que a humanidade busca incessantemente descobrir de onde vem em face da impossibilidade de descobrir para onde vai. A vontade de controlar o futuro é fonte de grande ansiedade para o geral das pessoas e fonte de renda para os profissionais da futurologia, entre eles os quiromantes, os astrólogos, os videntes e, mais acreditados nos meios acadêmicos, alguns especialistas do planejamento.
Planejar o futuro do país corresponde de certa forma a planejar a vida de seus habitantes. Já há alguns decênios, segundo certos juízos, o Brasil tem tido o privilégio, segundo outros a desdita, de existir sob o signo do planejamento. De todo governante, em qualquer nível de poder, de todo administrador, desde o dirigente de um grande conglomerado de empresas até o síndico de edifício, cobra-se um plano de ação.
Habituamo-nos também –a experiência ensina– a constatar que tais planos, sobretudo os magníficos, são belas arquiteturas de intenções, que, quase sempre, não saem do campo da intenção. A realidade do país, com os caprichos que o destino impõe, está a produzir sem cessar os proverbiais "fatos novos", que alteram constantemente o quadro em que a ação pública se desenvolve, exigindo de quem conduz os assuntos de Estado reavaliações frequentes e mais apuradas de suas metas e diretrizes.
No início da administração Itamar, cobrava-se com impaciência um plano de governo, isso, de uma forma quase mística, como se pede uma bênção milagrosa, mesmo que o bom senso estivesse a advertir que a dinâmica histórica, tão agitada nos últimos anos, fatalmente condenaria os calhamaços de benévolas intenções aos arquivos-mortos das secretarias de Estado.
A área de atividade que o presidente Itamar confiantemente me atribuiu –a Comunicação Institucional– com melhores razões ainda me pareceu impraticável como alvo de um planejamento rígido, posto que trabalhamos com a parte mais fluida, enigmática, invisível, impalpável, e ao mesmo tempo a mais sensível e mais profunda das vivências humanas: a mentalidade das pessoas.
A insensatez de imaginar que poderíamos planejar o pensar e o sentir de uma população de 150 milhões de habitantes jamais me passou pela cabeça, muito embora o pensar e o sentir da nação constituíssem a matéria-prima que nos era dada para cuidar.
Nessa circunstância, o que nos cabia fazer, em primeiro lugar, era investigar a fundo o ânimo dos brasileiros, sem nos apegarmos ao que ali houvesse de negativo, nem, muito menos, embarcarmos nas ilusões de grandeza que prevaleceram em outros tempos, completamente dissociadas da verdadeira realidade nacional. Nem Brasil grande, nem Brasil pequeno, mas Brasil real.
Poucos acreditavam que o Brasil seguia seguro e determinado a rota de um destino de engrandecimento, garantido e inescapavelmente preconizado em todos os nossos hinos e sambas-enredo.
As catástrofes políticas, econômicas, sociais, ecológicas e morais estavam muitas vezes negando prognósticos formulados por várias gerações.
Percebemos que as derrotas que o país conheceu, desencantando a população, a ela transmitiam o sentimento de que esses malogros se individualizavam. Cada brasileiro era um derrotado quando o Brasil perdia a Copa, a Fórmula 1 e o vôlei; cada brasileiro era um derrotado quando nossos negociadores da dívida externa voltavam cabisbaixos e humilhados das reuniões com os banqueiros internacionais; cada brasileiro era um derrotado quando as entidades preservacionistas nos levavam ao banco dos réus da história como bárbaros, depredadores do patrimônio ecológico mundial; cada brasileiro era um derrotado quando a ONU divulgava nossos indicadores sociais acabrunhantes...
E essa impressão de derrota influía em quase todos os terrenos, de forma decisiva, peremptória, no sentimento de auto-estima da nação inteira e de cada brasileiro em particular. O brasileiro, que se via antes como parte de um povo generoso, alegre, pacífico, solidário, afetuoso, trabalhador, passou a refletir a imagem de um povo triste, violento, hostil, inerte, preguiçoso, sem energia.
As desventuras da ética espelhavam –nos ídolos caídos– a cada brasileiro um rosto que sua simetria moral profunda o obrigava a repudiar. Ninguém –em sã consciência– deseja ser cínico. No entanto exaltava-se praticamente o cinismo como um dos valores maiores da nacionalidade. Ninguém em sã consciência deseja ser um monstro de egoísmo e, no entanto, era egoísmo a palavra de ordem dos defensores do princípio de "levar vantagem em tudo".
Estávamos lidando com uma tendência de transformação da mentalidade que precisava ser revertida. Certos costumes negativos da sociedade se estabeleciam e se difundiam, inviabilizando, na ponta, na ação, na vida nacional, como um todo, o sucesso de qualquer programa. Predominava a suposição de que com o malogro do "Projeto Brasil Grande", ensaiado nos anos 70, não havia mais projeto algum para o país, a não ser o projeto "salve-se quem puder".
Feito esse diagnóstico desalentador, cumpria agir com firmeza, bom senso, realismo e objetividade. Havia um fato novo capital: mudaram os governantes, mudou o estilo de governar. A ânsia de reencontro da nação com seu valores fundamentais seria atendida ao se mostrar ao povo um espelho honesto, em que ele passaria a se ver, com suas grandezas e limitações, e não no centro de uma feérica festa de fogos de artifícios que lhe trazia ilusões para, em seguida, lançá-lo em um abatimento tão profundo quanto a exaltação passada.
Temos em Itamar Franco um cidadão de personalidade transparente. E é de admirar que um homem com a sua simplicidade, desprovido das espessas armaduras psicológicas defensivas que guarnecem alguns políticos tradicionais, tenha atravessado incólume, sem ser esmagado, tantas etapas da vida pública, até se tornar presidente do Brasil.
Mas foi –exatamente na conjuntura tormentosa que o país viveu– que essa aparente fragilidade de um homem desarmado garantiu a sua força: o brasileiro, considerando-se também frágil e desprotegido, conheceu no entanto um chefe de Estado que tirou justamente de sua humanidade frágil e indefesa a capacidade para superar-se a si próprio e de se impor pela sensibilidade e pela compreensão, mostrando ao país a importância da honestidade.
Nosso trabalho de comunicação limitou-se a isso: expor com sutileza os pontos de identidade e identificação entre governante e governados, transmitir aos brasileiros com muita sinceridade a certeza de que o povo está no governo, o povo é governo, e que governo não é o flagelo do povo, como muitos pensavam, mas sua afirmação.
Um brasileiro traumatizado, trazendo na alma as marcas de profundas feridas narcísicas, lentamente começava a ver, nas mensagens que lhe chegavam, seu lado luminoso, que nunca se apagou. Todos os aspectos de beleza e grandiosidade foram ganhando foro de legitimidade, lá onde mais importa, lá onde esse acreditar é determinante, ou seja, no íntimo das pessoas.
Foi esse movimento de reforço positivo da identidade nacional, de recuperação da auto-estima, visando as qualidades e características mais fortes e marcantes do brasileiro, que criou a base psicológica suficiente e necessária para garantir a governabilidade do país.
E isso ocorria em circunstância especialmente adversa e negativa, em meio ao desmoronamento da credibilidade das principais instituições nacionais. Paradoxalmente, essas condições viriam a materializar o formidável projeto da estabilização da economia e da restauração da moeda.
A vitória nítida e superlativa da candidatura Fernando Henrique Cardoso no primeiro turno foi uma demonstração inequívoca do desejo do povo brasileiro, de perseverar na senda que o candidato eleito trilhava quando ministro da Fazenda: trabalho, competência, honestidade, transparência e identificação com a vontade nacional.
Agora, estamos colhendo o que semeamos. Quem abriu o coração e plantou a verdade, recebe hoje o testemunho da gratidão popular, que para se manifestar não queria outra coisa a não ser a vitória da esperança.

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