São Paulo, sábado, 31 de dezembro de 1994
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Folha - Qual será a marca do governo Fleury?

Luiz Antonio Fleury Filho - Habitação e saneamento básico. São 120 mil casas já entregues e 180 mil construídas. Os analistas criticam os que fazem grandes obras, mas induzem o administrador a fazer isso porque não se dá valor ao indicador social. Quando eu assumi, o índice de mortalidade infantil era de 32 por 1.000, e hoje é de 24 por 1.000.
Folha - Os índices não apareceram por fraqueza do chefe?
Fleury - Há uma tendência jornalística de só divulgar o negativo.
Folha - O Estado tem uma dívida de US$ 32 bilhões. Só ao Banespa, deve mais de US$ 8 bilhões. Como se explica isso?
Fleury - Quando eu assumi, a dívida do Estado era de US$ 21 bilhões. Minha primeira determinação foi obrigar que todas as estatais publicassem seus balanços reais, sem maquiar dados. Então as dívidas apareceram.
Veja a dívida do Estado com o Banespa: 0,7% vem de 77 e 78 (governo Paulo Egydio); 15,3%, do período de 79 a 82, no governo Maluf. Nada menos de 46,5% pertencem ao período de 83 a 86, no governo Montoro; 37,5% são de 1987 a 1990, do governo Quércia. No meu governo, cresceu 0%. A evolução das dívidas corresponde à variação da taxa de juros.
Folha - Por que essa questão ficou mais aguda agora?
Fleury - Eu tenho de cumprimentar o marketing do novo governo (Covas). Ele vai ter uma imunidade para a não-realização. E a mídia entrou nessa.
Durante a campanha eleitoral, as notícias contra o Banespa partiam do Banco Central. O próprio ministro da Fazenda (Ciro Gomes) se manifestou contra o Banespa, que move uma ação contra ele.
Folha - É uma conspiração contra o sr.?
Fleury - É a política. Para ganhar eleição.
Folha - O sr. colaborou esse tempo todo com Itamar. Houve traição?
Fleury - É isso mesmo. Com o presidente Itamar, eu sempre tive uma relação de cordialidade. O cafezinho sempre quente e a água sempre gelada.
Folha - Ainda bem que não era o contrário... E pão de queijo, o sr. comeu?
Fleury - De vez em quando... As solicitações que eu fiz em nome de São Paulo não foram atendidas. É o caso do empréstimo com o governo japonês para o projeto de despoluição do rio Tietê.
Há um ano e meio, terminamos as negociações com os japoneses. Aí começou a via crucis com o governo federal. A alegação era de que nós não tínhamos renegociado a dívida com o governo e não podíamos ter o aval da União.
Aí o governo começou a criar obstáculos para a remessa da resolução ao Senado. Quando eu tive de denunciar que havia um bloqueio feito pelo candidato do PSDB (Mário Covas), aí fui chamado, e o projeto foi para o Senado e aprovado.
Folha - Então, o governo de São Paulo não podia dar certo?
Fleury - Não podia. Porque, se desse mais certo, elegeria o sucessor. Quando o projeto voltou do Senado, foi baixada uma medida provisória dizendo que, em caráter excepcional, só o presidente daria aval para empréstimos externos. Eu levei ao Itamar essa solicitação. Não saiu até hoje.
Folha - Alguém fez fuxico contra o sr. ou Itamar decidiu não decidir por conta própria?
Fleury - Houve uma visível sabotagem feita pela equipe do PSDB no Ministério do Fazenda.
Folha - Quer dizer que o sr. rifou o ex-governador Orestes Quércia, defendeu a adesão do PMDB ao governo, deixou o que era certo, em nome do incerto, e ficou sem nada?
Fleury - Eu fui coerente. Defendi o rompimento com o governo em agosto de 1992. Perdi.
Folha - O sr. aponta como um dos fatores de crescimento da dívida os juros altos. Esse procedimento é um dos pilares do plano que o sr. vinha defendendo...
Fleury - Mas sempre dizendo que a política de juros altos tinha de ser revista.
Folha - Mas aí a política econômica teria de ser outra...
Fleury - Eu acho que a alta taxa de juros inibe a inflação inibindo o consumo, mas realimenta a inflação através do custo do dinheiro para o próprio governo.
Folha - Mas quem tem medo do Fleury?
Fleury - Se você pegar os índices de popularidade do meu governo, eles sempre foram altos, e a minha popularidade sempre foi maior do que a do meu governo. Na verdade, neste ano eleitoral, o grande mote foi esse: "Vamos segurar o Fleury de todo jeito".
Eu apontava isso, e a mídia nunca repercutiu.
Folha - Vai ver que é porque o sr., ao invés de denunciar essa perseguição, o sr. estava lá conversando com o Itamar...
Fleury - Eu estava levando para o Itamar os pleitos de São Paulo. Quando o Itamar veio ao Salão do Automóvel, eu disse a ele: "Itamar, agora terminou o primeiro turno, não precisa mais segurar nada. Seu candidato (Mário Covas) já está no segundo turno. Vamos liberar as coisas". Ele deu ordem para liberar, e o Ministério da Fazenda não liberou.
Folha - Então, Itamar não mandava no ministério?
Fleury - Essa afirmação é sua. Na minha frente, ele ligou para o ministro Ciro Gomes (Fazenda), mais do que isso, chamou o ministro no Palácio, disse "Vamos resolver esses problemas de São Paulo", e nada foi feito.
Folha - Ele fingia ou não mandava?
Fleury - O que eu assisti foi ele mandar e não ser feito.
Folha - Das estatais do setor energético, a Eletropaulo é a que apresenta maiores problemas...
Fleury - A Eletropaulo tem um problema sério que é o seguinte: ela não gera energia, ela distribui.
O problema dessa empresa é facilmente solucionado com a emissão de debêntures e alongando sua dívida. Só que nós solicitamos essas debêntures à CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e ela até agora não autorizou.
Pode verificar, a CVM vai autorizar amanhã (ontem, sexta-feira) para poder ser utilizada pelo próximo governo.
Folha - O Covas vai encontrar o governo numa situação tranquila?
Fleury - Ele vai pegar o governo com uma dívida que consome cerca de 15% das receitas do Estado. Com a dívida mobiliária, que é paga mês a mês, o governo vai ter de gastar em torno de 18% a 20% do que arrecada. Isso é muito. Mas eu estou pagando.
Ele vai precisar renegociar a dívida para conseguir ficar em uns 10%. Espero que encontre melhores condições para negociar.
Agora vão dizer que tem muita obra parada. Mas, como diminuiu a arrecadação do Estado e aumentou o serviço da dívida, eu fui obrigado a parar obras. E fiz isso em ano eleitoral. Poderia ter tocado os projetos. Aumentava o estoque da dívida. Mas não fiz isso.
Folha - O sr. é a favor da mudança da lei da aposentadoria?
Fleury - Sou, e, se houver modificação, espero que ela não consagre o direito adquirido, e eu abro mão da minha.
Folha - Por que não faz já?
Fleury - Porque eu vivo disso.
Folha - Mas se mudar, o sr. vai viver do quê?
Fleury - Abro mão da aposentadoria e peço reversão para o serviço ativo para completar o tempo.
Folha - Se a lei não mudar, o sr. mantém sua aposentadoria?
Fleury - Claro, eu tenho direito. As distorções maiores são das pessoas que se aposentam com quatro anos de governo, como existe em todos os Estados. Vocês vão verificar que há pensão para governador e que tem muita gente boa recebendo.
Folha - Quem?
Fleury - Não vou dizer porque senão vão falar que estou fazendo fofoca.
Folha - Mas o sr. não acha contraditório usar os benefícios de uma lei que o sr. mesmo reconhece que está cheia de distorções? O sr., como liderança política, não poderia dar o exemplo?
Fleury - Pode até ser. Eu vou continuar lutando para mudar a lei. Aposentadoria não é um patrimônio só da pessoa, é da família. Se eu retornasse ao serviço ativo, como procurador, teria uma limitação muito grande na minha atividade política. Seria incompatível uma coisa com outra.
Folha - O sr. vai morar em uma mansão após o término de seu governo...
Fleury - Não é uma mansão é uma casa.
Folha - Quanto o sr. vai pagar de aluguel? Pelas avaliações de mercado, é quase o valor da sua aposentadoria.
Fleury - Não. Você está enganado. Essa casa ficou fechada durante cinco anos.
Folha - O seu contrato de aluguel é compatível com sua aposentadoria?
Fleury - Absolutamente compatível com os R$ 6.900 que recebo. Pago preço de mercado. Não houve nenhuma vantagem pessoal nisso. Todo mundo sabe do que eu vivo, como eu vivo. De quantos políticos sabe-se isso?.
Folha - O sr. se sente abandonado ou continua sendo muito solicitado?
Fleury - Hoje se fala que dos 14 deputados federais do PMDB paulista, 10 são quercistas. É a história do Goebels, se você fala uma mentira mil vezes, vira verdade.
Hoje, sem falsa modéstia, eu recebi umas dez ligações sobre o problema entre o PMDB e o governo FHC com o esvaziamento do ministério do Lucena (Cícero Lucena, secretário de Políticas Regionais). Foram ligações de pessoas ligadas a mim, do PMDB, querendo orientação de como agir em relação a isso.
O que noto é a preocupação de grupos políticos, com ascendência na mídia, de esvaziar o Fleury.
Folha - O ex-governador Quércia contribui para esse caldo de cultura anti-Fleury?
Fleury - Eu não revelo minhas fontes (risos).
Folha - O que o sr. vai fazer após sua viagem a Portugal?
Fleury - Vou criar um centro de estudos para a formulação de políticas públicas. Vou trabalhar também para que o PMDB tome um rumo mais adequado. Acho que o partido tem um papel importante nas reformas que precisam ser feitas no país. Mas acho que o governo Fernando Henrique repete o erro de Itamar, que é alijar o partido do centro das decisões.
Folha - Há uma disposição de se caminhar para a oposição?
Fleury - Não chegaria a isso. Acho que o PMDB deve ser respeitado. Acho que o esvaziamento da pasta do Cícero Lucena (secretário de Políticas Regionais) e sua subordinação a um ministério, na minha opinião, contraria tudo aquilo que o PMDB discutiu no seu Conselho Nacional.
Folha - Diante disso, traído, como o sr. diz que foi, não se sente disposto a bater de frente com o futuro governo?
Fleury - Eu não olho para mim. O que aconteceu comigo é passado. Mas, se não houver uma reversão desse quadro, acho que o PMDB não deve apoiar o governo.
Folha - O sr. não acha que, após a posse de FHC, vai haver aquele irresistível movimento de adesão ao governo?
Fleury - Se for confirmada a informação de que vai haver um esvaziamento do ministério do Lucena, eu vou defender o afastamento do PMDB do governo.
Folha - O sr. não acha que isso está próximo ao "é dando que se recebe"? Porque não existe restrição programática...
Fleury - Existe restrição sim. O PMDB só concordou em apoiar o governo com uma série de requisitos. Eu inclusive defendi que não se aceitasse cargo. Agora, se vai aceitar cargo, isso tem que ser compatível com o partido. Tem que ser algo que não deixe o partido em uma situação de inferioridade. O PMDB quer participar da formulação da política do governo. Não quer apenas emprestar apoio a esta política no Congresso.
Folha - Após a chacina dos 111 presos da Casa de Detenção do Carandiru, por que não houve punições?
Fleury - Mas houve. No âmbito administrativo, as punições que eu poderia aplicar eu apliquei. Afastei todos os oficiais que participaram da ação. Afastei também o secretário de Segurança, apesar de, pessoalmente, eu achar que ele não tinha responsabilidade no caso. Aí se esgotou a atividade no âmbito da administração. Daí foi para a Justiça Militar. Não posso interferir na Justiça Militar.
Folha - Então o sr. reconhece que o Estado foi criminoso?
Fleury - Não reconheço porque não houve julgamento.
Folha - Na sua avaliação?
Fleury - O problema de fazer avaliação é que ela sempre pode ser precipitada. Por exemplo, muita gente da OAB criticou minha conduta. Recentemente, o OAB chegou à conclusão que eu não tive nenhuma responsabilidade pessoal no episódio.
Folha - Mas a polícia estava sob seu comando.
Fleury - Não entendo isso. Se, amanhã, um repórter da Folha provocar qualquer desatino, vocês não são responsáveis por isso.
Folha - Mas se o policial soubesse que o governador reagiria a qualquer tentativa de abuso, que há uma orientação clara de que haveria punição nesse caso...
Fleury - Mas eles sabiam disso. Eu fui secretário da Segurança, e nunca acomodei ou deixei de investigar qualquer caso de violência policial.
Folha - Qual seu maior erro?
Fleury - Foi não procurar ter um bom relacionamento com os setores formadores de opinião. Meu governo não vai ser analisado já. Vai poder ser bem-avaliado daqui a alguns anos, e então se verá que um louco resolveu dar início, por exemplo, ao projeto de despoluição do rio Tietê.
Folha - Se o PMDB nada fizer em resposta à intervenção do Banespa, o sr. admite a hipótese de romper com o partido?
Fleury -Posso romper, sim. Estou procurando o presidente do PMDB, deputado Luiz Henrique (SC). Foi uma agressão, na calada da noite, contra o principal governador do partido.
Saio do governo, debaixo de todo esse tiroteio, aprovado pela população, conforme revelou o Datafolha. Não saio de joelhos para o governo federal. Se é verdade que o Covas foi previamente comunicado da intervenção, ele começa o governo muito mal, de joelhos.

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