São Paulo, quarta-feira, 2 de fevereiro de 1994
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Coppola dá duas versões do sonho americano

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Nascido para o cinema como um "movie brat" (pivete fílmico) Francis Ford Coppola só fez aumentar sua importância na indústria de Hollywood. A barra que ele comprou, barra teórica, barra comercial, barra dramática é mais difícil do que a de muito diretor experimentalista "vítima do sistema": a tragédia da luta de fazer arte no meio do mercadão da "indústria".
É fácil se esconder atrás da "arte" e ver o mundo rolar lá fora, enquanto o cineasta se enobrece de náusea. Coppola foi ao coração das coisas. Ser de real vanguarda nos EUA é ter coragem de falir. Coppola vive neste experimentalismo econômico há anos, mergulhando em roubadas magníficas como em "Apocalipse Now" e se salvando à última hora, ou quase perdendo a mulher, Eleanor, que não segurou a loucura do Vietnã reconstituído pelo marido alucinado. Se separaram.
Catarse estetizada
Coppola pirou e, para elaborar a dor, fez "O Fundo do coração" (One From the Heart), onde mais uma vez teve a coragem estética de perder dinheiro. Jogou US$ 35 milhões no filme e afundou de vez os estúdios Zoetrope, saindo com uma fantasia delirante sobre separação e dor de corno.
"O Fundo do Coração" é um grande melodrama musical desestruturado em cima de um fio de história óbvio (toda separação é óbvia) onde um casal se entedia depois de quatro anos de casados (Teri Garr e Frederic Forrest) e cada um busca outro amor no coração da luminosa Las Vegas. Morrem de saudade nos braços dos amantes fortuitos (Raul Julia para ela –um garçom latino e Nastassja Kinski, uma artista de circo, para ele) e se reencontram.
O filme foi um fracasso graças à burrice máxima do público americano e ao pecado capital cometido por Coppola: ousou ser estilizado, metalinguístico e não-naturalista. O mercado não perdoa. O público de idiotas não se ligou na grande "féerie" de neon, marquises de estrelas, crepúsculos no deserto, alegorias da cascata kitsch que é a genialidade americana, tudo maravilhosamente falso, como um Fellini de plástico fazendo arte pop sob a voz "negra" de Tom Waits, narrando-cantando.
Bons e maus sonhos
Mas "O Fundo do Coração" é um arco-íris de imagens (a comparação kitsch vai em homenagem ao filme) que experimenta tudo: musical reciclado, videoclip, teatro assumido, fragilidade proposital da trama, diálogos improvisados, chegando a um resultado inovador, raramente visto em Hollywood. O filme é tão matizado como a filmografia de Coppola, que ostenta em seu port-fólio filmes de gângsters, filmes de guerra, esta colorida paródia da vida americana e, logo depois, um clássico "noir" do desespero: "O Selvagem da Motocicleta" (Rumble Fish), adaptação do romance de Susan E. Hinton, de quem já havia levado para as telas "Vidas Sem Rumo".
Filmado em preto-e-branco, conta a historia de Rusty James (Matt Dillon), o ingênuo delinquente que sonha com o heroísmo das "gangs" de rua com o mesmo idealismo dos que acreditam na grandeza careta da América. Seu irmão é uma lenda viva, "the motorcycle boy" (Mickey Rourke), antigo chefe dos "Rumbles", uma "gang heróica" que sumiu. Rourke chega como um samurai desencantado, grande lutador, forte, sábio, zen e, se preciso, violento como um mestre de karatê. Rourke faz o auge de sua carreira (hoje em declínio) criando uma alegoria crítica da tradição americana do marginal-herói solitário, do "loner", do "maverick", que nos anos 80 fica perdido e sem valor.
Cultura desitradata
O filme fala da morte de toda uma cultura de transgressão, dos "beats" aos "hips", de uma contra-cultura que se desidratou até virar "política correta". Não é à toa que o pai alcoólatra é Denis Hopper, o primeiro selvagem da motoca em "Sem Destino", assim como não é por acaso que a "mise-en-scène" tem às vezes a velocidade e o "punch" de outro solitário, Orson Welles.
Com música de Stewart Copeland ex-baterista do The Police, "Rumble Fish" é a sombria crônica de um tempo em que a esperança virou ingenuidade. Junto a "O Fundo do Coração", paródia de coloridas esperanças românticas, "Rumble Fish" compõe, com seu negror, a outra margem do rio americano.

Filme: O Fundo do Coração
Direção: Francis Ford Coppola
Elenco: Nastassja Kinski, Frederic Forrest
Lançamento: Orovídeo, av. Rio Branco, 185 sala 812, tel. 021/533-0851

Filme: O Selvagem da Motocicleta
Direção: Francis Ford Coppola
Elenco: Matt Dillon, Mickey Rourke
Lançamento: Concorde, rua Marechal Xavier da Câmara, 20, tel. 011/857-7553

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