São Paulo, quinta-feira, 3 de fevereiro de 1994
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As dificuldades do Plano FHC

FERNANDO DAMATA PIMENTEL; MAURICIO BORGES LEMOS

FERNANDO DAMATA PIMENTEL e MAURICIO BORGES LEMOS
O déficit brasileiro é superestimado para viabilizar o ajuste fiscal
O plano de estabilização proposto pelo ministro Fernando Henrique Cardoso enfrenta os mesmos problemas técnicos, políticos e ideológicos que têm perpassado todos os planos de contenção inflacionária já adotados na economia brasileira desde o início dos anos 80. Propõe-se, por um lado, um amplo ajuste fiscal, com contenção de gastos e aumento da arrecadação; de outro, adota-se uma "âncora" (no caso, a URV que tenderá a ser direta ou indiretamente atrelada ao dólar) com função precípua de desindexação e a consequente quebra da inércia inflacionária.
A equipe econômica de FHC, todos notórios ex-cruzadistas e certamente "escaldados" pela experiência negativa do Plano Cruzado, quer um ajuste prévio do déficit público para a subsequente adoção da âncora (recentemente apareceram indícios de uma aceitação tácita de um ajuste simultâneo e não mais prévio, como vinham pretendendo até então FHC e equipe). Tal diagnóstico significa, implicitamente, não apenas que a causa básica da inflação é o déficit público, como também, o que é óbvio, sugere a existência de um déficit público significativo. As duas hipóteses merecem algum reparo, especialmente a segunda.
Em primeiro lugar, sabe-se que a parte principal do déficit brasileiro é composta pelos juros das dívidas externa e, principalmente, interna, havendo um superávit primário na esfera federal. Em segundo lugar, os Estados de um modo geral tendem a apresentar déficit primário, que vem a ser financiado pelos seus bancos estaduais e sancionado pelo próprio governo federal. Por outro lado, os municípios estão razoavelmente equilibrados, dadas as limitações impostas pelo Tesouro e pelo Banco Central, que impedem o financiamento de déficits virtuais.
Para visualizar o que se está dizendo aqui, tome-se, por exemplo, a variação da dívida mobiliária em poder do público mais o papel moeda e os depósitos à vista como "proxy" do déficit (tal hipótese mostra-se aproximadamente correta em 1993, ano em que as reservas internacionais permaneceram estáveis). Este cálculo mostra um resultado de apenas US$ 2,2 bilhões como déficit operacional efetivo, montante que corresponde a irrisórios 0,5% do PIB. Ou seja, o déficit é superestimado, provavelmente com o intuito de viabilizar política e ideologicamente determinada estratégia de ajuste fiscal para o Brasil.
Por outro lado, pode-se postular, também, que não é exatamente o déficit público que provoca inflação em momentos de estagnação e recessão como o que vivemos. O exemplo da administração republicana nos EUA, nos anos 80, com déficits elevados e inflação baixa, constitui uma importante evidência neste sentido. Na verdade, nas circunstâncias específicas do Terceiro Mundo, os fatores responsáveis pela inflação são muito mais complexos, sendo seu epicentro basicamente financeiro.
Em termos sintéticos, o problema reside na "desconfiança" estrutural provocada por nossa moeda, a qual tende a ser compensada por uma solução aparente: a indexação da economia e a elevação da taxa de juros, provocando o círculo vicioso inflacionário dos últimos 13 anos.
Como vimos até aqui, o papel do déficit público deve ser muito relativizado no diagnóstico do impasse econômico. Além disto, há pelo menos três fatos relevantes que têm contribuído para alterar fundamentalmente a situação.
O primeiro e mais importante é que a questão da dívida externa está virtualmente superada, pelo menos no médio prazo, constituindo um fenômeno que tende a se materializar não apenas nos acordos em processo de renegociação, mas principalmente na existência de um estoque de mais de US$ 25 bilhões de reservas. Com isso, a dívida externa, que outrora fora uma das causas centrais da crise brasileira que se iniciou no início dos anos 80, deixa, na prática, de representar um problema.
O segundo fato relaciona-se ao relativamente insignificante estoque da dívida pública mobiliária. Como pode ser observado no quadro, o total desta dívida em poder do público (títulos estaduais e municipais incluídos) vai pouco além de 11% do PIB. Mais do que isso, se adicionarmos a este total o estoque de meios de pagamento, os depósitos de poupança e todos os títulos financeiros privados, chegamos a apenas 27% do PIB, o que representa tecnicamente muito pouco, quando comparado à realidade dos principais países desenvolvidos, nos quais somente a dívida pública geralmente supera 60% e, somada à dívida privada, a bem mais de 100% do PIB.
O terceiro fato relaciona-se à situação da dívida do governo com a classe trabalhadora; mensurada somando-se os depósitos totais do FGTS e PIS-Pasep a uma estimativa do valor presente das aposentadorias a serem cobertas pela Previdência Social, chega-se a provavelmente não mais do que US$ 90 bilhões, quantia que pode ser perfeitamente coberta por todos os ativos públicos federais e municipais, com destaque para as empresas estatais.
Todas essas ponderações levam à conclusão simples e clara: o problema macroeconômico da estabilização, no caso brasileiro, é muito menos uma questão de "estoque" (as dívidas ou estão equacionadas, ou podem ser cobertas por ativos não-financeiros) e muito mais um distúrbio de "fluxo".
A forma perversa de financiamento do setor público (via indexação e taxa de juros) alimenta a tendência hiperinflacionária presente na nossa economia e impede que os estoques sejam manejados de modo a retomar o crescimento da produção. É fundamental reconhecer, portanto, que a necessária redução substancial da taxa de juros tem, como único pré-requisito, um redirecionamento dos fluxos de capitais sobrantes que, nas condições brasileiras, só conseguem encontrar guarida na esfera especulativa financeira e/ou com ativos reais.

FERNANDO DAMATA PIMENTEL, 43, economista, é professor da Universidade Federal de Minas Gerais e secretário municipal da Fazenda em Belo Horizonte (MG).

MAURICIO BORGES LEMOS, 43, economista, é professor da Universidade Federal de Minas Gerais e secretário municipal de Planejamento em Belo Horizonte (MG).

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