São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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O poeta que veio do frio

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Joseph Brodsky é um poeta que escreve em russo (e atualmente também em inglês: trata-se de um caso raro de perfeito bilinguismo literário), mas sua nacionalidade, segundo o parágrafo cinco do passaporte interno dos cidadãos soviéticos, era judaica. A dissidência e o exílio poderiam completar o quadro. Sua trajetória e obra acrescentam-lhe, porém, complexidades inesperadas. Antes de ser um dissidente, foi um "drop out" que, adolescente, abandonou a escola e a perspectiva de um posto de "colarinho branco", para trabalhar como operário numa fábrica. Sua carreira poética, principiada nos anos do degelo khruscheviano, seria tolhida pouco depois, num julgamento surrealista no qual o condenaram a cinco anos de trabalhos forçados no norte ártico do país, por crime de parasitismo e vadiagem, o que correspondia ao exercício da profissão literária sem licença oficial. Depois de cumprir apenas parte da sentença, mas impedido de publicar na URSS, ele a deixou para se fixar nos EUA, onde vive desde então.
Devido à sua idade, Brodsky pertence a uma geração posterior à época do grande terror. Nascido em 1940, ele viveu a guerra como criança –o prolongado cerco de sua Leningrado natal– e não tinha 13 anos ainda quando morreu o "guia genial dos povos". Sua vida adulta na Rússia coincidiu com o início do demorado desmantelamento da máquina totalitária. Coincidiu também com a institucionalização do anti-semitismo (que transformaria seu país no principal obstáculo para a paz no Oriente Médio), numa época marcada por um novo contrato social onde o Estado, abrindo mão da combinação bastarda de terror e de fanatismo popular, aceitou conviver com a população num clima de cinismo mútuo.
Numa sociedade onde nenhuma informação –nem mesmo a puramente literária– circulava honestamente, Brodsky teve a sorte de ser "adotado", no começo dos anos 60, por Anna Akhmátova, única sobrevivente da maior geração poética que o país já teve, aquela –formada também por Pasternák, Maiakóvski, Mandelstam e Tzvietáieva– que chegou à maturidade na época da outrora chamada "gloriosa revolução de outubro". Isso lhe permitiu retomar os vínculos com a melhor tradição viva, uma tradição quase que inteiramente obliterada naqueles tempos, e tornar-se tanto seu propagandista quanto continuador. A gratidão para com a poesia do passado imediato e o horror cinzento da parte do mundo em que lhe foi dado nascer permeiam muito de sua poesia e de sua prosa.
A poesia e a prosa de Brodsky são fenômenos não opostos, mas absolutamente contíguos. As mesmas preocupações e o mesmo modo de organizar percepções e idéias são comuns a ambas. Sua poesia é prosaica no sentido de se ocupar tanto de trivialidades cotidianas, como uma mosca, quanto de abstrações, como a tirania, cujo tratamento mais corriqueiro ocorreria num ensaio. O comprimento mesmo de seus poemas, bem como seu caráter frequentemente digressivo, servem para afastá-los da imagem substantiva e concentrada da lírica moderna, razão pela qual seus leitores não raro os consideram neoclássicos. Sua prosa, por outro lado, é poética não por qualquer característica vaga ou etérea, mas por fugir, na sua organização, de um esquematismo que se associa erroneamente à lógica. Ambas, contudo, prosa e poesia, buscam a precisão e um tipo de objetividade que deriva de um auto-exame explícito e contínuo.
Na edição brasileira de seu livro de ensaios e memórias "Menos que Um", de
18 textos, seis foram omitidos. Felizmente, a escolha foi criteriosa e o núcleo do livro se manteve intacto. Talvez o que mais venha a surpreender seu leitor seja a convicção tranquila de suas opiniões. Discorra sobre poetas e prosadores injustiçados –Platonov e Akhmátova– ou simplesmente assassinados pelo sistema –Mandelstam–, relembre sua infância e juventude, uma coisa ressalta incessantemente: a crítica impiedosa a mais de meio século de desvairio comunista.
Brodsky é, então, um poeta anticomunista? Sem a menor sombra de dúvida. Em suas próprias palavras: "Era uma vez um menino. Ele vivia no país mais injusto do mundo. O qual era governado por criaturas que, por todos os critérios humanos, deviam ser consideradas degeneradas. O que nunca aconteceu." Ou referindo-se ao fundador do regime, Lênin: "Havia talvez apenas duas coisas que ele tinha em comum com Pedro 1.: o conhecimento da Europa e a brutalidade. Mas enquanto Pedro, com sua variedade de interesses, sua energia borbulhante e o amadorismo de seus grandes desígnios, era uma versão atualizada ou desatualizada do homem da Renascença, Lênin era na verdade um produto de seu tempo: um revolucionário de mentalidade estreita, com um típico desejo monomaníaco e pequeno-burguês de poder, que é, em si mesmo, um conceito extremamente burguês." Nada na sua exposição devastadora dos absurdos da realidade soviética lembra o pavor com que os liberais ocidentais fugiam (e fogem) do risco de serem chamados de anticomunistas. Sabendo que o fato de ter rompido com o regime –embora fosse o regime que tivesse rompido com ele– já o desqualificava diante de tais interlocutores, não se preocupa em tentar convencer quem quer que seja, limitando-se a falar, desapaixonadamente, sobre aquilo que conhece bem.
Nada seria mais injusto, contudo, do que reduzir Brodsky às dimensões claustrofóbicas da política. Ele, aliás, seria o primeiro a se insurgir. Se há uma preocupação de fundo nos seus ensaios, essa é a da poesia enquanto uma atividade enraizada não na sociedade, e sim em algo distinto. O que ele defende é o direito, ou o dever, do poeta de estar acima da política, em simbiose ativa com algo que a transcende no espaço e no tempo: a linguagem, que pertence a toda a comunidade, mas sobre a qual sós ele atua em profundidade.
Nos tempos atuais de populismo generalizado –multiculturalismo, história dos oprimidos etc.–, as opiniões literárias de Brodsky deverão ser consideradas ainda mais reacionárias que sua posição política. Esse poeta russo é um elitista irredutível que não tem medo de afirmar que a democracia não vale nem para a ciência nem para as artes. Pois teve tempo de sobra para observar que as devastações culturais, políticas, sociais e econômicas não só convivem e coincidem como são afinal a mesma coisa. Oriundo de um país onde à supressão absoluta de qualquer liberdade associou-se, no caso das artes, a obrigatoriedade de servir ao Estado, ele sabe que, despejado compulsoriamente da suposta torre de marfim, o artista costuma ser enviado em seguida para o Gulag. E não vai sozinho.

A OBRA
Menos que Um, de Joseph Brodsky. Capa de Sílvia Ribeiro. Tradução de Sérgio Flaksman. Companhia das Letras (r. Tupi, 522, São Paulo, CEP 01233-000, tel. 011 826-1822, fax 011 826-5523). págs. CR$ 11.100

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