São Paulo, segunda-feira, 7 de fevereiro de 1994
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Voto: facultativo e obrigatório

FLORESTAN FERNANDES

Voto: facultativo e obrigatório
Entre as inovações importantes que o relator da revisão constitucional, deputado Nelson Jobim, propõe está o voto facultativo. Seria inócuo discutir formal ou materialmente os fundamentos jurídico-constitucionais de sua proposição. A escolha constitui um direito e não se pode coagir o eleitor a exercer tal direito. Trata-se de algo de foro íntimo. A premissa de sua realização está na plena liberdade de decidir sobre a participação ou a exclusão do pleito eleitoral.
Marcelo Coelho já escreveu sobre o assunto com sua costumeira argúcia crítica. Miguel Reale Júnior examinou a matéria, quase em seguida, em excursão jurídica penetrante. As análises sublinham que o deputado Nelson Jobim põe as coisas em seu lugar. Não sou adverso à alteração. Pergunto-me, apenas, se o Direito crítico não aure outras perspectivas sobre a questão. Dado o enorme atraso cultural do país, os requisitos da cidadania não se difundem universalmente, por força da concentração social, racial e regional da riqueza, da educação e do poder. Vivemos, de fato, sob uma democracia restrita.
Aliás, a abstenção eleitoral golpeia a representação e a soberania do povo mesmo em países adiantados. Os meios de comunicação de massa provocam efeitos bem conhecidos pelos filósofos, pelos psicólogos e pelos sociólogos especializados na investigação dos processos de desmobilização política, de manipulação partidária e de omissão generalizada que conduzem a eleições mutiladas. Explica-se, assim, a ascensão de presidentes medíocres e de parlamentares destituídos de qualificação real. Por fás ou nefas, a democracia está em crise e cai, em regra, nas mãos de lobistas com alvos impatrióticos, de cliques ou de grupos de interesses organizados, às vezes supranacionais.
Ficando-se no âmbito do Brasil: apesar de ser uma clara distorção e de permitir, em certas circunstâncias, o "voto de cabresto" e os "currais eleitorais" –sem os quais a fisiologia e os clientelismos se debilitariam ou desapareceriam– a obrigatoriedade do voto impõe-se como arma de dois gumes e como "mal necessário" (até que a democracia alcance dinamismos próprios).
O voto obrigatório não se confunde com uma "escola de cidadania". Ele reponta como necessidade provisória. Os eleitores, tangidos pela obrigatoriedade, são na maioria semicidadãos ou pessoas destituídas de cidadania, "condicionadas" para votar. Porém, o ato de votar, em si mesmo, e as campanhas eleitorais caem em sua percepção política, como atestam vários inquéritos de opinião. Tende a crescer a compreensão da importância da cidadania. São condições subjetivas e objetivas cruciais de olhar a democracia com realismo e de despregar-se da tradição política autoritária. Vale a pena dilatar, ainda que em parágrafo do artigo, sua vigência. A soberania do povo seguirá caminhos ásperos. Mas nos aproximamos do pilar da República democrática: ao povo o que é do povo.

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