São Paulo, terça-feira, 8 de fevereiro de 1994
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As objeções à fase URV

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

Se a conversão dos salários não for pela média, é inútil tentar estabilizar
Os jornais informam que, depois das advertências de alguns economistas respeitáveis, como Mário Henrique Simonsen, Francisco Lopes e Yoshiaki Nakano, a equipe econômica estaria rediscutindo a idéia da Unidade Real de Valor. Alguns dos seus membros estariam mesmo dispostos a saltá-la, passando diretamente do ajustamento fiscal à reforma monetária com âncora cambial. As dificuldades jurídicas e operacionais relacionadas com a introdução da URV reforçariam essa posição.
Ora, não obstante as advertências sejam compreensíveis, não faz sentido suprimir a fase URV. Fazê-lo significa ou desistir de vez de estabilizar a economia neste ano –já que uma simples âncora cambial não precedida da fase URV é inviável no Brasil dadas as defasagens nos aumentos de preços–, ou então tentar a sorte através de outro congelamento acompanhado de tablita –solução hoje politicamente inviável.
Vejamos em primeiro lugar a advertência teórica dos três economistas. O que eles nos dizem é que ao se adotar um índice de preços diário e, portanto, ao se indexarem instantaneamente todos os preços, existe o perigo de uma explosão –ou um "deslize", como prefere Mário Henrique– no sentido da hiperinflação. Creio que esse temor é infundado.
Teoricamente, uma indexação instantânea é explosiva. Qualquer pequeno choque implica em uma aspiral inflacionária que levaria a taxa de inflação ao infinito. Na prática, porém, a indexação nunca é instantênea. E os choques são sempre parcialmente absorvidos. Na verdade, uma explosão hiperinflacionária só ocorre quando há um ataque especulativo bem sucedido contra a moeda, o qual, por sua vez, só pode ocorrer se as reservas internacionais forem baixas –o que não é verdade– ou se o governo resolver atrasar a URV –o que obviamente a equipe econômica não fará.
Não há dúvida de que haverá uma aceleração inflacionária com a introdução da URV, já que haverá conversões do cruzeiro para a URV acima do preço médio efetivamente pago ou recebido. Existe, entretanto, um receio exagerado de que os agentes econômicos façam em sua grande maioria a conversão pelo pico.
Ao se fazer essa pressuposição está se raciocinando como se os agentes econômicos fossem todos monopolistas. Ou então como se as regras que prevalecem hoje nos próprios setores competitivos para indexar preços, prevalecerão também na conversão do cruzeiro para a URV.
Na inflação inercial os vendedores podem agir como se fossem monopólios ao corrigirem seus preços de acordo com a inflação passada, sem se importar com a demanda, porque assumem que seus concorrentes também terão que fazer o mesmo e porque seus compradores, por sua vez, também assumem que poderão repassar o aumento nominal dos custos para seus preços, já que seus concorrentes também o farão. No caso da conversão para a URV, entretanto, a situação é diversa.
O comprador que aceitar comprar por um preço acima da média não pode assumir que seus concorrentes também aceitarão essa regra de conversão. Ao fazê-lo ele estará aceitando um aumento de custos real, que só não se confirmará se, afinal, o poder do seu fornecedor prevalecer sobre todo o mercado. Ora, não há razão para sustentar essa pressuposição radical.
Haverá, de qualquer forma, alguma aceleração inflacionária em cruzeiros no período em que estiver em vigência a URV como índice-moeda. Por isso, é conveniente que a duração dessa fase seja curta, limitada a, no máximo, dois meses. Esse período não será suficiente para que todos os preços sejam convertidos pela média. Mas não é isto o que se quer da fase URV.
Esta fase não existirá para que se possam equilibrar plenamente todos os preços relativos. Isto só existe em modelo econômico, não na realidade. Nesta, se se deixar prolongar a fase URV, as distorções sobrevenientes poderão ser maiores do que o equilíbrio a ser alcançado. O que se quer simplesmente com a fase URV é dar uma oportunidade aos agentes econômicos converterem seus preços antes da reforma monetária.
Por outro lado, é preciso entender que a decisão de conversão dos preços para URV não é uma decisão pesada, irreversível, já que não haverá congelamento. Se a conversão for insatisfatória, o agente econômico poderá sempre revê-la. O governo tem um compromisso claro de não congelar preços e será irracional não manter esse compromisso. Tão irracional quanto seria atrasar a URV.
O risco que o Plano FHC realmente enfrenta, na conversão para a URV, é o da conversão dos salários. Esta terá também que ser feita pela média. Especialmente a conversão do salário mínimo, cuja média, nos últimos 12 meses, foi de aproximadamente 67 dólares. Se o governo não tem condições políticas de assegurar essa regra de conversão é inútil tentar estabilizar.
O argumento de que na indústria houve aumento de produtividade que justificaria aumentos reais de salários não se sustenta. Os salários reais só podem aumentar com o aumento da produtividade geral da economia, que se mede pelo aumento da renda por habitante.
Finalmente, argumenta-se que a URV enfrenta problemas práticos. Como converter para URV os preços nos supermercados? Nas passagens de ônibus? Como indexar os impostos sem enfrentar problemas jurídicos adicionais?
Ora, em primeiro lugar, não é necessário converter todos os preços para a URV. Novamente, só em modelo isto é necessário, não na prática. Em segundo lugar, nada impede que os impostos continuem a ser indexados pela Ufir. Basta que a variação desta acompanhe rigororsamente a variação da URV.
É compreensível que haja dúvidas em relação ao Plano FHC. Afinal, trata-se de uma estratégia contra a inflação sofisticada, de difícil compreensão. A fase URV permite um razoável equilíbrio dos preços relativos, uma razoável neutralização dos efeitos distributivos originados na defasagem dos aumentos de preços. Garante, assim, que, após a reforma monetária que extinguirá o cruzeiro real e transformará a URV em real, o resíduo inflacionário na nova modeda seja pequeno.
Desta forma será possível controlar a alta inflação sem recurso seja ao congelamento, seja à hiperinflação. É, portanto, o mecanismo imperfeito, mas essencial da fase URV –que transformam o Plano FHC na primeira tentativa realmente séria de controle da inflação desde 1990. Será um crime contra o país não aproveitar esta oportunidade, seja pela resistência dos políticos, seja pela insegurança dos economistas em relação ao seu próprio instrumental técnico.

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