São Paulo, quarta-feira, 9 de fevereiro de 1994
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URV

ANTONIO DELFIM NETTO

Uma das mais vigorosas lições que aprendíamos no curso de introdução à economia política do ilustre professor Paul Hugon na FEA/USP nos idos de 1949 era a justificativa de um decreto de 1936 do Terceiro Reich. Ele iniciou a construção de uma economia baseada no planejamento central sem socializar a propriedade dos meios de produção.
O seu texto era o seguinte: "O planejamento deve ter como objetivo maximizar a eficiência da intervenção com o mínimo possível de interferência direta na economia. A intervenção direta é desnecessária quando as empresas cooperam voluntariamente com a política estabelecida pelo Estado ou quando, por consideração de puro interesse privado dos agentes econômicos (sic), a sua ação corresponder aos desígnios propostos pela nação".
O interessante no decreto não era a identificação explícita do Estado com a nação, comum a todos os regimes totalitários. Nem era o experimento de centralizar o comando da economia com a permanência da propriedade privada, que levou tantos analistas menos argutos a confundi-lo com o apoio dos "capitalistas" ao "nazifascismo", como se pudesse haver "capitalismo" sem mercado!
O fundamental no texto é o reconhecimento de que a cooperação voluntária só pode ser obtida ou por motivos ideológicos, religiosos etc., ou fazendo coincidir os objetivos da política econômica com os interesses dos agentes.
Mesmo um regime fechado e, no limite, um regime de terror (Revolução Francesa, economia nazista, fascista e soviética), a política econômica que contraria os interesses dos agentes só atinge seus objetivos a curto prazo. E ao custo de sérias distorções, cuja correção exige, depois, medidas radicais.
Ainda que possa parecer estranho, é essa lição que determinará o sucesso ou não da introdução voluntária da Unidade de Referência de Valor (URV). Em que medida a nova unidade de conta e suas consequências imediatas (necessidade de ajuste pela média) coincidem com o interesse dos agentes? Reduzir a inflação é um interesse percebido apenas genericamente pelos agentes do lado "real" da economia (trabalhadores e empresários).
No mercado financeiro, a URV será mais um indexador entre outros 13. No lado "real", da economia, entretanto, ela será "unidade de conta" dos preços que regularão o salário "real" e a margem de lucro e, assim, produzirá a redistribuição de renda. Como o governo aumentou sua parte no PIB, a participação do setor privado vai ter que ser reduzida (a não ser que houvesse um déficit em contas correntes). Quem vai perder, ou melhor, quem vai ter a percepção (ainda que não verdadeira) de que está perdendo?
Se ninguém aceitar a percepção da perda, os preços se acelerarão em cruzeiros e em URV. Nesse caso, como nos ensina o decreto do Terceiro Reich, teremos a "interferência direta", já anunciada pelo senador Pedro Simon. (Quem tiver interesse no assunto não deve perder o interessante trabalho do professor Fernando Cardim de Carvalho (FEA/UFRJ), "Reforma Monetária, Indexação Generalizada e o Plano de Estabilização", 1994.)

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