São Paulo, sexta-feira, 11 de fevereiro de 1994
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'O Leopardo' chega em versão integral

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Título: O Leopardo (Il Gattopardo)
Direção: Luchino Visconti
Elenco: Burt Lancaster, Alain Delon, Claudia Cardinale
Onde: a partir de hoje no Cinesesc

Um filme de 31 anos de idade é não apenas o mais importante lançamento da semana, mas também um dos acontecimentos cinematográficos do ano.
"O Leopardo", uma das três ou quatro obras-primas absolutas de Luchino Visconti (1906-76), chega pela primeira vez ao Brasil em sua versão integral, de 185 minutos, falada em italiano. A versão exibida anteriormente por aqui era a dublada em inglês e mutilada pelos distribuidores internacionais.
Nenhum superlativo é excessivo quando se fala de "O Leopardo". Baseado no romance homônimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (leia texto ao lado), o filme é várias coisas ao mesmo tempo: crônica da história da Sicília à época de Garibaldi e da unificação italiana (década de 1860), drama da decadência de uma família nobre, história de amor e solidão.
Tudo gira em torno de um homem, don Fabrizio, príncipe de Salina (Burt Lancaster), patriarca siciliano à beira da velhice, mas ainda vigoroso e autoritário. À volta de sua figura pétrea, ao mesmo tempo rude e elegante, hierática e sensual, ruge todo um mundo em transformação: a revolução popular de Garibaldi, a modernização da economia e dos costumes.
O contraponto a esse representante da velha ordem agrária-aristocrática que tem dificuldade em se adaptar aos novos tempos é seu jovem sobrinho Tancredi (Alain Delon), um oportunista que quer participar das mudanças "para que tudo continue como antes".
Entre esses dois pólos masculinos antagônicos e complementares, há uma mulher extraordinária, Angelica (Claudia Cardinale), filha do rico latifundiário don Calogero (Paolo Stoppa) e noiva de Tancredi.
Para desenvolver as tensões dramáticas entre esses poucos personagens, diante do pano de fundo das multidões que guerreiam ou trabalham ou bailam, Visconti lançou mão de toda a sua habilidade de narrador e encenador (não por acaso aperfeiçoada também no teatro e na ópera) e de sua aproximação pessoal com o tema abordado: o próprio cineasta provinha de uma das famílias nobres mais antigas de Milão, e se sentia deslocado no mundo urbano e capitalista em que lhe coube viver.
Tudo é belo e perfeito nos mínimos detalhes em "O Leopardo". Mas, ao contrário da assepsia e da caretice dos dramas de época à la James Ivory, o fausto aqui tem como contrapeso a rusticidade da Sicília e a sensualidade oculta de cada personagem. Por toda parte, nas rachaduras dos muros e palácios, crescem ervas eriçadas e indomáveis. O pó e o suor grudam nos belos trajes. O desejo espreita por trás de cada gesto ritual.
Visconti escolheu a dedo seus atores, pela beleza física e intensidade de expressão. Claudia Cardinale, especialmente. Cada uma de suas aparições é uma epifania. Sua segunda entrada em cena, molhada de chuva, deve ser uma das imagens mais sensuais de todo o cinema. Vista por Visconti, Angelica é a imagem arquetípica da atração feminina, com sua juventude, sedução e mistério.
O "tour de force" do cineasta é o célebre baile no palácio Pantaleone, em Palermo (na verdade o palácio Gangi, incendiado há dois anos), que ocupa o quarto final do filme. Com movimentos elegantes e precisos de câmera e uma montagem que dá a impressão de respeitar a duração real do tempo narrado, ele faz bailar todos os personagens, com seus grandes e pequenos dramas.
Num dos grandes momentos do filme, don Fabrizio se afasta sozinho do agito do salão e se encontra numa sala vazia. Por uma porta aberta, entrevê em outra sala os inúmeros vasos sanitários e penicos usados pelos convidados. É como se ele tivesse de repente a revelação da verdadeira dimensão humana, para além da fugacidade da história, da família e do amor.

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