São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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Miscigenação carnavalesca

RICARDO SEMLER

Pus-me a pensar sobre carta de um senhor negro que protesta contra o meu comentário racista (eu disse que o nosso embaixador em Washington havia eleborado uma nota digna de diplomata africano). Realmente, o leitor parece ter razão. Mas ocorre que África não é sinônimo de África negra. Naquele continente estão o Egito, a Líbia, a Argélia, Marrocos, Mali, Mauritânia e mais árabes do que há brasileiros aqui. Referia-me ao terceiromundismo da maioria das representações diplomáticas da África: nacionalistas, tacanhas e autoritárias. Alguns seletos embaixadores nossos não são diferentes, portanto motivo de piada nos círculos diplomáticos de Primeiro Mundo.
Agora, quem já tratou com embaixadas africanas não esquece tão logo. São displicentes e vagarosas, e a dificuldade e o custo do visto são inversamente proporcionais à importância do país. Depois, uma passagem pela imigração inclui anotações extensas no próprio passaporte sobre o número de série da câmara de vídeo. Aí, é hora da contagem do dinheiro americano nos bolsos, e compra forçada de moeda local, sendo esta cambiável por papel higiênico no fim da estada. Nestes dias, um editor da BBC me contou uma estória verdadeira que ilustra a situação da diplomacia de Terceiro Mundo: tendo sofrido esperas e burocracia intermináveis na embaixada do Chade em Bruxelas – para onde tivera que se deslocar, já que o visto só se concedia lá –, a equipe chegou ao aeroporto de Ndjamena e adivinhe quem estava a chefiar a colocação das malas na esteira da bagagem? O próprio embaixador! Mentira, eu disse. Deve ter sido um cara parecido. Não, era o próprio, até filmaram o homem... Aliás, urge esclarecer que eu tenho a melhor opinião possível do Itamaraty e acho que o Brasil é bastante competente na área diplomática. Mas sendo o Brasil o que é, a escolha dos embaixadores é às vezes desvirtuada, e o tal circuito Elizabeth Arden (o das capitais chiques) muitas vezes, nas últimas décadas, tem caído na mão de gente que só reforça nossa imagem de brucutus tupiniquins.
Voltando ao assunto do racismo, chego no tópico Carnaval. Afinal, é o momento da consagração do olvidar das diferenças. Toca mulata rebolando ao lado de branquinhas lagartixas, e pseudo-arianos se escancarando nas areias em busca de uma negritude efêmera. Hora de fazer de conta que somos todos uma grande família étnica. O racismo existe, é claro, e tem uma conotação econômica brutalesca. Mas, como no caso da discriminação contra as mulheres, ninguém confessa o que é. Todo homem se diz respeitador dos direitos da mulher, e todos são a favor da igualdade das raças. Mas um pouco (no mínimo) de machismo e racismo temos todos. Claro, monitorar a semântica e racionalizar o assunto ajuda um pouquinho, mas, ao mesmo tempo, aumenta o atraso, já que ficamos tapando o sol com a peneira.
O Carnaval junta as duas coisas, dando supremacia aos discriminados. As mulheres reinam monarquicamente, usando da provocação como arma, e os negros, que têm no sangue a intimidade com culturas milenares, põem os branquinhos pra assistir, de língua de fora. E depois vem a quarta cinzenta, e o controle volta para os mesmos de sempre. Enfim, discriminação não se lava de uma hora pra outra, e todos nós temos que tomar cuidado com o assunto. Semântica também, mas não só.

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