São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994 |
Próximo Texto |
Índice
Zapatistas põem fogo no México A insurreição de Chiapas deve ser condenada sem eufemismos MARIO VARGAS LLOSA
Para saber o que espera o México não é preciso forçar a imaginação. Basta lembrar o recentíssimo passado de El Salvador, antes que a Frente Farabundo Martí e o governo de Cristiano tivessem feito as pazes, ou dar uma olhada na atual realidade da Guatemala, Colômbia e Peru, onde movimentos subversivos sem a menor chance de tomar o poder se organizam, entretanto, para gerar insegurança e golpear os governos, pondo carros-bombas emboscando patrulhas militares, com sequestros e outras provocações que desencadeiam atrozes represálias das quais são vítimas pessoas humildes e inocentes. Essas coisas não ocorriam no México, país no qual sete décadas de domínio do PRI (Partido Revolucionário Institucional), haviam convertido em um modelo de ordem e estabilidade? Pois bem, agora ocorrem. Eu estava por esses mesmos dias do levantamento em Chiapas percorrendo as ruínas maias do Estado vizinho de Yucatán e os acontecimentos me surpreenderam em Mérida, sua capital. Vi, pela televisão, o jovem Comandante Marcos anunciar os objetivos da rebelião: acabar com o capitalismo e estabelecer o socialismo no México, para levar justiça e pão aos índios empobrecidos pelo Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos e Canadá (que começou a funcionar em 1º de janeiro). O guerrilheiro parecia ignorar porque havia caído o muro de Berlim e não havia se dado conta de que o Golfo do México e o mar do Caribe fervem de barcos em que desesperados cubanos, fartos do escorbuto e das dietas de raízes que lhes trouxe o socialismo, estão dispostos a ser devorados pelos tubarões com a única condição de chegar ao inferno capitalista, inclusive em versão mexicana. Por isso, e apesar de ser um crítico severo do sistema antidemocrático que impera no México (por tê-lo chamado "a ditadura perfeita" muitos apaniguados do regime priista me cobriram de impropérios), creio que a insurreição zapatista de Chiapas deve ser condenada sem eufemismos, como um movimento reacionário e anacrônico, de índole ainda mais autoritária e obsoleta do que a que representa o próprio PRI, um retrocesso ideológico que, na utópica hipótese de que conquistassem o poder, não diminuiria a corrupção nem aumentaria a limitada liberdade de que goza o povo mexicano, pior ainda, a converteria num verticalismo totalitário asfixiante e, além da ditadura política, infligiria ao México no campo social e econômico o que –sem uma única exceção– sempre trouxeram ao povo o estatismo e o coletivismo: desestruturação do aparato produtivo e pobreza generalizada. Aqueles que celebram a assunada zapatista de Chiapas porque pensam que ela pode debilitar as estruturas de poder em que se assenta o domínio hegemônico do PRI sobre a vida política do país e acelerar a indispensável democratização, se equivocam. O mais provável é que ocorra o contrário; que, ao se sentir ameaçado de maneira frontal pela esquerda, o regime se endureça e que todas as tendências que o compõem se unifiquem num reflexo de sobrevivência, à medida que em seu seio percam posições aqueles que representam a alternativa liberal e modernizadora de Salinas de Gortari e Colossio (a quem os zapatistas, com uma cegueira ideológica, parecem considerar os únicos responsáveis pela miséria dos camponeses) e as recuperem os populistas de triste memória, cujo discurso, pelo menos, não está muito longe do Comandante Marcos. A rebelião armada só se justifica em ditaduras totalmente impermeáveis à contestação e à crítica, nas quais não há resquício algum para uma ação pacífica em favor de mudanças, satrapias despóticas como a do general Cendrars no Haiti ou a de Castro em Cuba. Esse não é o caso do México onde, apesar de seus múltiplos e sutis tentáculos de controle da sociedade e de suas fraudes eleitorais, o PRI não tem impedido a oposição de esquerda representada pelo cardenismo, ou a de direita, do PAN (Partido de Ação Nacional), de ganhar espaços importantes na estrutura do Estado e recrutar em suas fileiras consideráveis setores da opinião pública. É verdade que este processo democratizador é muito lento, o que, explicavelmente, exaspera aos impacientes, mas a ação dos insurrectos de Chiapa e as bombas e os blecautes nas cidades que são suas sequelas, ao invés de acelerá-lo podem acabar com ele. É preciso ter muito pouca visão da realidade contemporânea para não reparar que a abertura do México aos mercados mundiais, a privatização de suas empresas públicas e a assinatura do Tratado de Livre Comércio é algo que solapa os cimentos sobre os quais se assenta a "ditadura perfeita" do PRI. Sem dúvida não foi esta a intenção dos governos de La Madrid e de Salinas, ao estimular políticas econômicas liberais; porém esta é a consequência inevitável. Este processo não se verá interrompido pela rebelião zapatista, mas não há dúvida que esta, ainda que efêmera, lhe assestou um sério revés. Denegriu a imagem internacional do México, afetando com isso a confiança que nos meios financeiros do mundo havia despertado a política modernizadora dos últimos anos, o qual, sem dúvida, restringirá o investimento estrangeiro e dará novas armas aos grupos de interesse nos Estados Unidos que combatem o Tratado de Livre Comércio com argumentos nacionalistas e racistas de un Perot: o México é um país primitivo e bárbaro que não está preparado para estabelecer uma mancomunidade econômica com países do primeiro mundo. Vejo com surpresa que isso parece satisfazer a alguns intelectuais adversários do regime como se disso se pudesse derivar benefícios políticos ou econômicos para os pobres do México. Quais? De que modo? Que a política de abertura ao comércio internacional e as privatizações estimuladas por Salinas de Gortari poderiam ter sido feitas de maneira mais eficiente e mais pura, não ponho em dúvida. Que essas privatizações deveriam servir não só para acarrear recursos ao erário nacional, mas, sobretudo, para estender a propriedade e as ações entre os trabalhadores e empregados de baixa renda, é evidente: esta é uma crítica válida para quase todas as privatizações feitas na América Latina. Mas haveria uma alternativa sensata a esta política? Ou teria sido preferível manter o status quo? Ou continuar com as nacionalizações de bancos que perpetrou López Portillo, provocando as catastróficas consequências que conhecemos? Nada disso significa ignorar que os benefícios da modernização não alcançaram a base da pirâmide social mexicana e que existem setores, como é o caso dos camponeses e comunidades indígenas de Chiapas, que foram prejudicados. Tais críticas devem ser bem-vindas, mas, para serem úteis, devem vir acompanhadas de propostas que favoreçam efetivamente aos índios e camponeses, quer dizer, que lhes dêem o quanto antes os instrumentos materiais e pedagógicos indispensáveis para que possam participar da modernidade a que já ascenderam, graças às reformas econômicas dos últimos anos, vastos setores da sociedade mexicana. A insurreição zapatista não vai nesta direção, senão na oposta, na do escorpião que exorciza o fogo cravando no esterno o ferrão envenenado: combater as intoleráveis desigualdades entre ricos e pobres igualando na miséria a todos os mexicanos. Próximo Texto: O louco razoável de Chesterton Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |