São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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O louco razoável de Chesterton

PAULO A.G. DE SOUSA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em artigo intitulado "Chesterton suspende crença na sanidade" (Folha, 26 de janeiro), Marcelo Coelho, ao comentar os paradoxos de Chesterton, confunde dois sentidos do termo "paradoxo" e, com isso, torna sua análise obscura. Pois veja:
Quando Chesterton, segundo Marcelo Coelho, nega a crença de que "a loucura é atraente e poética", afirmando que "a selvagem poesia da loucura só atrai os saudáveis de espírito" e que "Para o louco, ela é a coisa mais prosaica, pois é verdadeira"; ou quando Marcelo Coelho diz que Chesterton defende a "crença em milagres ou entidades sobrenaturais como sendo um fator de sanidade mental para o ser humano", negando um critério de racionalidade consensualmente aceito (e socialmente legitimado) por algum grupo de pessoas: respectivamente, aqueles que têm uma visão romântica da loucura e aqueles que têm a observabilidade como um critério de demarcação da racionalidade das crenças. Nesses casos, Marcelo Coelho está pensando no sentido etimológico do termo "paradoxo": aquilo que é contra a doxa, contra o senso comum de um certo grupo social ("como se fossem matérias do mais absoluto bom senso").
No entanto, ao comentar um dos paradoxos mais famosos de Chesterton ("O louco não é aquele que perdeu a razão. O louco é aquele que perdeu tudo, exceto a razão."), Marcelo Coelho visualiza a possibilidade de eliminá-lo: "Sob o risco de ser tachado de louco, um filósofo da escola analítica inglesa poderia, creio, contestar o paradoxo... Pois o sentido de 'razão' na primeira frase (perdeu a 'razão') é diferente do sentido de 'razão' na segunda. Na primeira, significa bom senso, entendimento razoável das coisas, trânsito normal no âmbito da realidade. Na segunda, 'razão' significa raciocínio lógico, talento dedutivo."
Mas a ambiguidade do termo "razão" postulada pela exegese de Marcelo Coelho é irrelevante para a eliminação do paradoxo (no sentido etimológico), causando mesmo, ao contrário, uma duplicação do paradoxo: no caso de um uso unívoco do termo "razão", a primeira frase negaria a crença de que a essência do louco é ter perdido a razão e a segunda intensificiaria ainda mais esta negação ao afirmar que o que resta ao louco é somente aquilo que seria, segundo a mesma crença anterior, a negação de sua essência, ou seja, as duas frases, como que numa "gradação de efeito hiperbólico", reforçam o mesmo paradoxo; no caso de uso equívoco do termo, o que aconteceria seria a ocorrência de dois paradoxos distintos, ou seja, um que negaria a crença de que a loucura seja falta de bom senso (supondo algum sentido preciso para esta expressão) e outro que "mais que negaria" a crença de que a loucura seja ausência de "talento dedutivo".
O que Marcelo Coelho parece ter em mente nesse seu raciocínio (a referência à filosofia analítica é sintomática) é um segundo sentido, mais restrito, do termo "paradoxo": aquilo que vai de encontro aos princípios da lógica clássica (especialmente o princípio da não-contradição: "Uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto." Pois esse é o caso em que se torna relevante, para a eliminação de paradoxos, a postulação de uma ambiguidade. Por exemplo, imagine que o dizer de Chesterton fosse o seguinte: "Louco é aquele que perdeu a razão e louco é aquele que perdeu tudo, exceto a razão" (um paradoxo neste segundo sentido, pois, se o termo "razão" não é equívoco, um louco pertenceria ao mesmo tempo ao conjunto dos que não têm razão e ao conjunto dos que só têm razão). Neste caso, ao postular que o termo "razão" tem dois sentidos diferentes, "bom senso" e "talento dedutivo", poder-se-ia afirmar, sem paradoxo, que os loucos, que não têm bom senso, só têm raciocínio lógico.
Mas, enfim, se Marcelo Coelho, na tentativa de visualizar a eliminação do paradoxo, estava pensando realmente nesse segundo sentido, não há motivo mesmo para se postular uma ambiguidade (pelo menos não há motivo para um louco, nos termos de Chesterton!): que um louco faça parte do conjunto dos seres que não perderam a razão, não é logicamente incompatível com que um louco faça parte do conjunto dos seres que só têm razão.

PAULO A. G. DE SOUSA é mestrando em antropologia pela Universidade de Brasília

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