São Paulo, terça-feira, 15 de fevereiro de 1994
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Conheça o "bunker" da biodiversidade

MARCELO LEITE
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

Se a biodiversidade for de fato a riqueza do futuro, o Brasil já tem o seu Fort Knox. Ele fica em Brasília e se chama Cenargen, Centro Nacional de Pesquisa de Recursos Genéticos e Biotecnologia da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Sob as imensas telhas pré-fabricadas dos cinco prédios na ponta da Asa Norte repousa quase a metade do patrimônio genético guardado para o século 21: mais de 70 mil amostras de sementes, representando variedades de 373 espécies e 166 culturas.
No Brasil inteiro há cerca de 150 mil dessas amostras (ou "acessos"), calcula o engenheiro agrônomo Marcio de Miranda Santos, 42, chefe do Cenargen. Elas são conservadas em lotes de no mínimo mil sementes, em saquinhos impermeabilizados, à temperatura de -20ºC. Uma vez por década as amostras são monitoradas para verificar se o poder germinativo permanece intacto, o que nos bancos de germoplasma do Cenargen ocorre com 85% das sementes. A idéia é que essas plantas voltem a crescer daqui a 50 ou 100 anos.
"Este centro tem essa particularidade, aqui se pensa com o horizonte de 50, 100 anos", afirma o veterinário Assis Roberto de Bem, 43, que chefia a área de embriologia animal. Sob sua responsabilidade estão 15 mil doses de sêmen e 300 embriões congelados, entre os quais variedades ameaçadas de extinção como o cavalo de Roraima. "Talvez o que hoje é considerado lixo tenha valor no futuro."
Há muitos motivos para manter essa biblioteca genética. Se o Cenargen não tivesse introduzido muitos tipos de soja, por exemplo, a Embrapa teria encontrado dificuldades para desenvolver as variedades que expandiram essa cultura até o cerrado. Se estivessem disponíveis somente as variedades tradicionais norte-americanas, a soja ainda estaria restrita ao Sul, onde as condições climáticas se assemelham às dos EUA.
O aspecto estratégico da chamada coleção de base pode ser percebido pelos cuidados com sua segurança. Apenas três pessoas têm acesso às chaves das quatro câmaras refrigeradas a -20ºC, com capacidade total para 189 metros cúbicos, ou 80 mil acessos. Além do chefe da segurança, só o engenheiro agrônomo Francisco Ricardo Ferreira, 42, chefe de conservação de recursos genéticos, e um subordinado seu têm cópia.
Muitas plantas, no entanto, não podem ser "arquivadas" na forma de sementes, seja porque estas se encaixam na categoria das recalcitrantes (veja glossário abaixo), seja porque a planta se reproduz sem sementes. Nestes casos, recorre-se a três formas de conservação: "in vitro", na forma de plantinhas obtidas por micropropagação em tubos de ensaio (12 mil, ao todo); em 84 bancos ativos de germoplasma (plantações experimentais); e em 5 reservas genéticas.
Na opinião de Santos, o programa brasileiro de recursos genéticos é o quarto melhor do mundo –depois dos EUA, Japão e Índia. O Centro começou a funcionar em 1976, na esteira da primeira conferência da ONU sobre meio ambiente, em Estocolmo (1972). A
ênfase então recaía no enriquecimento das culturas de valor comercial. Com a Eco-92, abriu-se o ciclo da biodiversidade, da matéria-prima genética da indústria do futuro –a biotecnologia. "Precisamos fazer o mesmo, agora, com os microorganismos", diz Santos.
Com a extensão e a diversidade de seus ecossistemas, o Brasil possui o maior patrimônio genético do mundo. Um exemplo: foi de uma árvore da Amazônia, a castanheira, que pesquisadores do Cenargen isolaram o gene responsável pela metionina, um componente fundamental da nutrição humana ausente de gêneros como a soja e o feijão.
Isolado o gene, tornou-se possível introduzi-lo em outras plantas, tecnologia que o Cenargen desenvolveu em colaboração com a empresa belga Plant Genetic Systems. Os belgas depositaram pedidos de patente em vários países e a obtiveram, por exemplo, no Chile. No Brasil, que não dispõe de uma legislação de patentes, essa invenção de brasileiros não está protegida.

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