São Paulo, terça-feira, 15 de fevereiro de 1994
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Billy Wilder nunca saiu de cartaz

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Aos 87 anos, Billy Wilder é o mais antigo dos grandes dinossauros do cinema, um autêntico "kinossaurus rex". Aposentado desde 1981, quando pôs em desordem sua última comédia, "Amigos, Amigos, Negócios à Parte" (Buddy Buddy), nunca saiu inteiramente de cartaz. Vez por outra, uma mostra internacional de filmes o homenageia com algum prêmio especial e uma retrospectiva.
Um de seus mais glorificados feitos, "Crepúsculo dos Deuses" (Sunset Boulevard), virou musical de sucesso simultâneo em dois continentes, e sua pioneira contribuição ao filme noir, "Pacto de Sangue" (Double Indemnity), deu o mote à última comédia de Woody Allen.
Agora é um livro que o devolve à luz dos refletores: "Et Tout le Reste Est Folie", tradução francesa (Robert Laffont, 523 págs.) das memórias do cineasta, colhidas originalmente em alemão pelo jornalista Helmuth Karasek. "Ninguem é Perfeito", o célebre arremate de "Quanto Mais Quente Melhor", talvez fosse um título mais adequado, mas foi o próprio cineasta quem sugeriu a ultima estrofe ("e o resto é loucura") de um poema alemão sobre o beijo, por ele colhido num almanaque de 1860. De loucura e beijo Wilder entende um bocado. De loucura mais ainda. E não apenas porque conheceu Freud pessoalmente.
FreudFoi no tempo em que Freud ainda morava em Viena e Wilder ainda ganhava a vida como jornalista. Pautaram em seu jornal uma enquete sobre a ascensão do fascismo na Itália e entre as personalidades (Alfred Adler, Arthur Schnitzler, Richard Strauss) a serem ouvidas pelo jovem repórter estava o pai da psicanálise.
Cumprindo à risca o ritual de praxe, Wilder entregou seu cartão à empregada de Freud e ficou esperando. "Pela fresta da porta", lembra ele , "pude ver o gabinete com o sofá –que era bem menor do que eu supunha. Poucos minutos depois, a porta da sala de jantar se abriu e diante de mim apareceu Sigmund Freud, ele também bem menor do que eu supunha. Tinha um guardanapo dependurado no pescoco e trazia na mão o meu cartão. 'Você é jornalista?', perguntou. 'Sou, doutor', respondi. Apontando para um canto da sala, ele encerrou a conversa: 'A porta de saída é aquela ali'. Convenhamos: é mais honroso ser expulso por Freud do que brindado com um banquete por Kadhafi."
São histórias como esta que fazem das memórias de Wilder uma leitura prazerosa do princípio ao fim. Evidente que, se entregues a um jornalista com maior intimidade com o cinema (Karasek chama Allan Dwan de Allen Dawn, John Mills de Charles Mills, Leo McCarey de Leo McLorey), as lembrancas da velha raposa vienense seriam ainda mais saborosas. Mas o que havia de importante a ser lembrado -do início da Primeira Guerra Mundial até o leilão da estupenda pinacoteca do cineasta, em 1989– o foi, com razoavel competência, respeitando-se o incontrolável senso de humor do memorialista.
Senso de humor
Em tudo, até mesmo na desgraca, Wilder encontra motivos para uma "boutade". Como gostaria de morrer? "Aos 104 anos, gozando de perfeita saúde, de um tiro dado por um marido que me encontrasse trepando com a mulher dele". Nada mais wilderiano que esta cena vaudevillesca, de resto centrada sobre um dos temas favoritos do cineasta: o adultério (e suas hilárias consequências). Seu primeiro roteiro foi vendido no sufoco a um produtor berlinense carente de um quarto para se esconder de um corno furibundo.
A pergunta que aqui cabe tambem foi feita por Kasarek: com tanto talento para criar situações engraçadas, por que Wilder não aproveitou os ventos que então sopravam na Europa e tornou-se um autor de comédias teatrais da classe de um Férenc Molnar ou de um Noel Coward? "Porque me apaixonei perdidamente por três filmes", revela o cineasta, citando-os na ordem em que foram vistos: "O Encouraçado Potemkim" (de Eisenstein), "Sob os Tetos de Paris" (de René Clair) e "Senhoritas de Uniforme" (de Leontine Sagan).
Debutou na tela em 1929, ao lado de um ex-colega no curso de direito, chamado Fred Zinnemann. Foi um dos responsáveis pelo primeiro grande filme realista alemão, "Gente de Domingo", assinado por dois outros futuros diretores hollywoodianos, Robert Siodmak e Edgar G. Ulmer. Mas o que o irrequieto Wilder de melhor tinha a oferecer dependia do som. Tão logo o cinema falado chegou à Alemanha, choveu oferta em sua horta. Infelizmente, a maioria dos filmes era de um gênero com o qual ele, apesar de vienense, não se afinava, a opereta. Não obstante, foi graças a um musical, por ele escrito com o título de "Pam Pam", que Hollywood o mandou chamar no final de 1933. Aquela altura, Wilder já vivia em Paris, longe das garras nazistas, e até já dirigira, a contragosto, um filme, "Mauvaise Graine", que não lhe traz boas recordações.
Desafios a censuraPor sorte caiu na Paramount, onde os diretores tinham mais liberdade para criar e os roteiristas, maiores possibilidades de passar à direção. A exemplo de Ernst Lubitsch (seu mestre confesso) e Preston Sturges, um belo dia, Wilder conquistou o direito de pôr em cena os seus próprios "scripts". De lá só sairia nove filmes depois, injuriado com a sugestão de um manda-chuva para que abrandasse o antinazismo de "Inferno 17".
Wilder não escrevia seus roteiros sozinho. Fez dupla, durante 16 anos, com Charles Brackett –a mais bem paga de Hollywood na época. Brackett implicava com algumas idiossincrasias de Wilder e este, com o reacionarismo do companheiro. Romperam, basicamente, por incompatibilidade de gênios. Wilder queria ousar mais, afrontar a moral vigente, desafiar a censura. Com Brackett, nada feito.
Com seu segundo parceiro, I.A.L. Diamond, se deu melhor. Ficaram juntos 24 anos e 12 filmes. É sabido que Wilder tinha as idéias mais brilhantes, mas alguem precisava colocar um pouco de ordem e lógica nelas, e para isso Diamond era perfeito. Foi de sua fertilíssima imaginação que saiu o genial desfecho de "Quanto Mais Quente Melhor".
"Imbroglios" sexuaisNa companhia de Brackett, Wilder jamais teria escrito suas comedias mais fesceninas, repletas de "imbroglios" sexuais sem culpa nem sermão, e muito menos aquelas que, por razões várias, não foram avante. Uma das delíicias do livro de Karasek é o inventário dos projetos que Wilder foi obrigado a deixar de lado. Um deles era uma paródia da tragédia de Édipo, na qual mãe e filho assumiam abertamente o seu conúbio, sofriam o diabo por isso, até que, um dia, a mãe comunicava ao filho que não era sua mãe, e este, chocado, a matava e em seguida se suicidava.
Outro, ainda mais impudente, tinha como herói um cientista louco, que descobrira a fórmula de destruir o universo e, por medida de segurança, a tatuara em seu pênis. Como a fórmula só podia ser lida com o pênis em estado de ereção, a CIA monta uma equipe de sedutoras espias femininas. No meio da trama, porém, descobre-se que o cientista é bicha, o que obriga a CIA a trocar suas espias por um agente homossexual. Wilder pensou em Woody Allen para o papel do sábio e em Charles Bronson para o do agente.
Wilder também ruminou coisas sérias, como o drama do coronel Redl, que quase filmou no final dos anos 50 e acabou levado à tela pelo húngaro István Szabó. Mais recentemente, encantou-se com o processo em que se meteu o bilionário (e suposto uxoricida) Claus von Bulow. Mas Barbet Schroeder chegou na frente, prolongando ainda mais a aposentadoria de Wilder, que não parece lá muito insatisfeito com o seu ócio. Até porque o goza com o máximo de dignidade, esbanjando saúde, ao lado de uma mulher bonita. Só falta agora arrumar uma amante cujo marido, além de ciumento, ande armado e seja bom de mira. Mas ainda tem 17 anos para isso.

Título: Et Tout Le Rest Est Folie
Autor: Helmuth Karaseck
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