São Paulo, quarta-feira, 16 de fevereiro de 1994
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Lutoslawski acentuou os poderes da música

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Talvez não seja inadequado, numa quarta-feira de cinzas, falar de música clássica –e, pior ainda, de uma morte. Importante compositor erudito, o polonês Witold Lutoslawski, morreu na semana passada, aos 81 anos.
Uma advertência. Há barulheira firme nas obras de Lutoslawski. Horas em que a orquestra caotiza tudo, numa confusão tremenda.
Para tentar compreender a obra de Lutoslawski, é preciso fazer referência ao compositor que mais o influenciou, Béla Bartók (1881-1945).
Bartók se situa, diz a crítica, no meio caminho entre Stravinsky e Schoenberg.
Stravinsky foi "vanguardista" na música um pouco como Picasso o foi na pintura. São personalidades que brincaram, por assim dizer, com todos os estilos, que reinterpretaram toda a cultura ocidental.
Imitando, retransformando os estilos de Pergolesi ou Bach, flertando na velhice com o dodecafonismo, Stravinsky foi sempre Stravinsky, sempre marcou pessoalmente os estilos de que se utilizava. Foi, em certa medida, um maneirista, mas um maneirista genial.
Schoenberg rompeu, como se sabe, com séculos de tradição. Inventou um sistema de organização sonora alheio aos padrões da tonalidade, baseado em regras restritíssimas, matemáticas.
Estes dois pólos da música no século 20, Stravinsky e Schoenberg, poderiam ser caracterizados de forma algo negativa: maneirismo versus formalismo.
Entre ambos, surge a figura de Béla Bartók. Não teve, por assim dizer, uma "mensagem", uma descoberta messiânica (Schoenberg) nem uma atitude exemplar, protéica, irônica como a de Stravinsky.
Lutoslawski seguiu a lição de Bartók.
Retém, deste compositor húngaro, algumas características.
A primeira é o trato com o folclore. Bartók aprofundou-se na música de seu país, realizando pesquisas de etnomusicologia, e encontrou um passado, uma tradição popular a serem transformados em caricaturas, com superioridade irônica. Lutoslawski dedicou-se ao folclore polonês durante a primeira metade de sua carreira.
A segunda característica bartokiana é mais difícil de descrever. Quem gosta de Bartók conhece, entretanto, o triplo tipo de contraste de que se faz a sua música.
Aqui entramos num universo puramente artístico, em que o espírito analítico e interpretante tem de silenciar um pouco.
Três momentos, por assim dizer, organizam a arte bartokiana. O primeiro é marcado pela tensão, pelo abismo contra o qual se afirma um motivo, uma melodia crispada, dolorosa. É o momento da angústia, do primeiro "allegro" nos quartetos ou concertos.
Em seguida, há o momento do silêncio, da quietude. Os movimentos intermediários, lentos, da obra de Bartók assumem com frequência a forma de uma "música notuna". Ruídos, vibrações da atmosfera, estalos de madeira, mistérios, irrupções súbitas de som –gritos de cigarras e de grilos, pios de pássaros invisíveis, expectativas, trilos no escuro.
O mistério da natureza -é como se os ruídos da noite "falassem" numa língua que nos é desconhecida- se interrompe, contudo, em triunfo nos movimentos finais das composições bartokianas. A afirmação da vida, um ritmo de dança, em motivos rústicos, alienados, brutais, como que assegura a vitória da tribo, da etnia, do povo, sobre a natureza. Mas é vitória selvagem, afirmação bruta, enquanto que a noite e a natureza, com seus delicados acenos e ruídos no silêncio, permanecem obscuros para nós.
Há em Bartók, para resumir, um esquema dramático: angústia/mistério/afirmação; ou: subjetividade/natureza/cultura; tensão/silêncio/alívio. Temas apropriados, evidentemente, a uma elaboração musical.
Lutoslawski pegou tudo isso, num idioma mais contemporâneo, o que significa: ultravirtuosístico e desconfiado.
A melhor obra de Lutoslawski, para quem não conhece nada dele, é o "Concerto para Orquestra", de 1954. Bartokiano e folclórico do começo ao fim (mas muito menos angustiado), revela a extrema virtuosidade do comportamento e desenvolvimento de células melódicas simples ("folclóricas") e sobretudo a maestria no uso das cores da orquestra. A instrumentação é riquíssima (os violinos se dividem em sete ou oito partes, a percussão consuma maravilhas, os sopros traçam arco-íris).
Depois, Lutoslawski evoluiu. "Jogos Venezianos", de 1961, foi a primeira manifestação do uso da técnica aleatória em suas composições. Técnica aleatória quer dizer acaso, improvisação. O maestro pára de reger, deixa os instrumentos da orquestra tocarem, sem critério de compasso e tempo.
O resultado, para falar francamente, é uma barulheira infernal. Uma das obras mais famosas de Lutoslawski, o "Concerto para Violoncelo e Orquestra" (1970) é bem duro de ouvir.
Mas o "Concerto para Harpa, Oboé e Orquestra de Câmara" (1980) e sobretudo sua "ChaŒne 2" para violino e orquestra (1985) apontam para uma escuta mais livre, hedonista.
Resumindo: Lutoslawski radicalizou Bartók naquilo que este tinha de noturno, de dramático e "moderno". Os acasos e interrupções misteriosas da música noturna bartokiana se fizeram, em Lutoslawski, silêncios e vibrações aleatórias da orquestra. Jogos.
As afirmações, as melodias que se calcam a contrapelo do silêncio, nas obras de Bartók, transformaram-se em ultraviolência nos timbres de orquestra (e ninguém como Lutoslawski soube, depois de Stravinsky, fazer da orquestra um instrumento de percussão).
A acumulação da angústia, o crescendo das tensões, ainda dramático e artístico em Bartók, tornou-se pura retórica em Lutoslawski.
Mais cor, mais liberdade, mais retórica, é isto o que Lutoslawski agregou à herança de Bartók. Foi, talvez, menos artista que seu mestre; mais óbvio, certamente, no jogo que empreendeu entre eletricidade, exasperação e contentamento. Mas se em Bartók a felicidade, a utopia se manifestavam em escapismo selvagem e folclórico, Lutoslawski soube recobrir a mesma esperança com acasos e barulheiras, com cores berrantes e desconfortáveis.
Lutoslawski foi desagradável e gentil, ao contrário de Bartók, mais ríspido, mais feliz, mais sério. Lutoslawski foi jocoso e grandiloquente, ao passo que Bartók foi mais ácido e otimista. Resultado, sem dúvida, de um ambiente social e político diverso, Lutoslawski sinaliza os impasses de nosso tempo.

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